Terça-feira, 20 de Julho de 2010

AS INVESTIGAÇÕES DA AGÊNCIA SIGGILON: O bar dos afogados - Capitulo 2

 

À noite, Ricardo, acomodado num dos colchões do sótão, que fará de cama improvisada, relê os registos que anotou no seu caderno exclusivamente utilizado para as investigações da Agência Siggilon. Vai aguardando pelo seu irmão, que fora à vila para falar com o rapaz que testemunhou os últimos instantes de vida duma das vítimas. Enquanto espera por ele, concentra a atenção numa das páginas do caderno, onde alinhavou os dados sobre as seis mortes ocorridas por afogamento:

 

- José Escarpa, 43 anos, vendedor, 1m72, 70 kg, natural de Peniche(morto em Março de 95)

- Henrique Marques, 55 anos, operário, 1m 82, 86kg, natural da Marinha Grande(morto em Julho de 95)

- Severino Canas, 35 anos, pescador, 1m70, 70kg, natural da Vila da Praia Velha(Morto em Novembro de 95)

- Valter Ramos, 40 anos, empresário, 1m79, 70kg, turista brasileiro(morto em Dezembro de 95)

- António Santamaria, 23 anos, estudante, 1m84, 80kg, natural de Coimbra(morto em Julho de 96)

- Sertório Reis, 52 anos, pescador, 1m65, 65kg, natural de Peniche(morto em Julho de 96)

 

Ricardo equaciona o perfil das pessoas que se afogaram, e vê o seu irmão chegar, vindo do encontro com a testemunha. O semblante de João não esconde algum desalento. “ Falei com o miúdo. Deve ser rapaz para doze, treze anos. Ele viu aquele Henrique Marques, o operário, a passear, lentamente, à beira-mar, a fazer rabiscos na areia, círculos ao que parece, e foi só isso o que ele viu. Não se apercebeu de nenhum movimento estranho nas redondezas, de nenhum gajo esquisito nas imediações. Ou seja, o testemunho do rapaz não serve para nada!”, afirma o estudante de História, com pouco entusiasmo.

 

Ricardo pergunta-lhe o que estaria o rapaz a fazer, para andar, à noite naquele lugar. João responde-lhe, declarando que o miúdo ia ter com o pai ao bar, para lhe dar um recado qualquer. Antes de entrar no estabelecimento, reparou na vítima, que parecia estar a apreciar, com grande entretenimento, a praia e a maresia. “ Era bastante natural o comportamento desse Henrique Marques. Estava a desfrutar o fim de semana, na companhia de familiares, e, segundo as informações que obtive no posto da GNR, aqui próximo, o homem até gostava muito do mar. Aliás, não te disse, mas antes de ir falar com o rapaz, dirigi-me a esse posto, pois o Sr. Favella é muito amigo do chefe de lá, e este está a par de tudo, de toda as cenas que aconteceram, e da nossa presença como investigadores neste caso.”, sublinha João. Ricardo diz ao irmão que não encontra padrão algum, no que respeita à avaliação do perfil das vítimas de afogamento. “Um tipo é alto e forte, o outro é baixo e magro., um é empresário, o outro é pescador, o outro é operário. Uma coisa é certa. A existir um assassino, é, sem dúvida, um homicida muito possante, enorme. Não é qualquer um que pega num homenzarrão de um metro e oitenta e tal e o afoga sem deixar marca!”, opina o sociólogo.

 

Seja quem for o assassino, o único pressuposto seguro que podemos retirar do comportamento dele, é que o indivíduo age, principalmente, quando o bar do Sr. Favella é mais frequentado e tem mais clientela. De resto, a acção deste homicida, a existir, mostra-se muito aleatória.”, refere João, com um discurso que intriga Ricardo. “A existir? Achas que o assassino pode nem sequer existir? Achas que as pessoas realmente se afogam sozinhas, e todos os outros factos são apenas coincidências macabras?”, questiona o sociólogo. “É possível que sim. Ou então, há uma força sobrenatural qualquer, uma forma de energia, a vaguear pela praia e a colher as pessoas que andam a passear à beira-mar, durante a noite. Contudo, há um indicador que me leva a negar esta hipótese do fenómeno sobrenatural. Estive a falar com uns pescadores, e eles disseram-me que, muitas vezes, há pessoal da pesca que gosta de ficar a dormir na praia, de madrugada, durante a primavera e o verão, antes de ir para a labuta. Logo, a tese do sobrenatural não funciona, senão muitas mais mortes teriam sido notificadas. O fenómeno misterioso apareceria e arrastaria para o mar esses pescadores que costumam ficar a dormir sobre a areia.”, remata João. Os Azumbsen acabam por definir o perfil do possível assassino: Indivíduo muito forte e muito ágil, capaz de afogar pessoas, independentemente do porte destes. O seu modus operandi deve incidir na procura de alguém que tenha bebido um pouco e que esteja à beira-mar. Por esse método, o assassino escolhe a vítima, graças às suas capacidades atléticas, leva-a para o oceano e afoga-a com subtileza, de modo a não deixar marcas. Deve morar longe da vila, eventualmente, até deve viver bem longe daquele lugar, e desloca-se, de propósito, à localidade, para cometer os seus crimes, devendo, por isso, usar um automóvel prático, discreto, que utiliza para se escapulir do lugar, mal concretize as suas intenções criminosas.

 

É um homicida que pretende, acima de tudo, levar à falência o Bar da Praia Velha. Mas será esta a verdadeira motivação dele? O dono disto pode muito bem estar-nos a ocultar qualquer coisa.”, pensa Ricardo. “Sim. Ou está a fazer um joguinho sinistro para ficar com o dinheiro do seguro, contratando algum mercenário para lhe afogar os clientes, ou mentiu-nos, e tem algum inimigo que se anda a vingar dele. Se for esse o caso, contratou-nos porque pretende ajuda para o apanhar.”, raciocina João. “Não acredito na primeira hipótese que mencionaste. O dinheiro do seguro de pouco lhe serve. Ainda por cima, estava a fazer algum lucro, não acredito nessa ideia. Acho que é mais plausível a possibilidade de ele estar a esconder algo.”, opina Ricardo, antes de perguntar ao irmão que impressões ele teve do ambiente do bar, ao nível das energias captadas pela psique, das forças extrasensoriais. “Este sitio, este espaço, pelo que me vou apercebendo, está cheio de auras positivas, o que é um bocado estranho. Devia ser o contrário, estiveram aqui pessoas que depois tiveram uma morte trágica. Mas o ar, em vez de estar denso e taciturno, apresenta-se leve, descontraído. Não percebo estas energias!”, declara o estudante de História, convicto de que, pela via paranormal, a investigação deles não receberá grande impulso.

 

A noite de vigia nada propicia. Os dias seguintes também são improfícuos. Durante uma semana, os Azumbsen não detectam nada de misterioso, de suspeito, em redor do bar. Nesse período de tempo, mais clientes afluem ao estabelecimento, refeitos dos acontecimentos trágicos de semanas anteriores. Este facto anima o Sr. Favella, que vê a sua clientela habitual a retornar ao bar, apesar do clima de malapata que o tem envolvido.

 

Depois de mais uma tarde perdida, a entrevistar pessoas da vila e dos arredores, sem resultados práticos alguns, os dois irmãos sentam-se ao balcão do bar, bastante desmoralizados. Verificam que, apesar de tudo, o estabelecimento está bem composto de gente. O Sr. Favella serve-lhes uma rodada. “Então, rapazes! Não desanimem. Em breve vão descobrir o criminoso! De qualquer modo, a vossa presença aqui deve ter assustado o malandrim. Há clientes que voltaram ao bar, porque se sentem seguros com vocês cá. Vão ver! Hão de apanhar o assassino! Hão de apanhá-lo!”, exclama o anfitrião deles, num entusiasmo que João acede em partilhar, brindando com ele. Ricardo, menos efusivo, deixa-os a conversar e vai descansar um pouco. Entretanto, mais alguns fregueses juntam-se à tertúlia regada a álcool que João Azumbsen e o Sr. Favella vão entabulando.

 

O sociólogo, deitado no colchão, adormece, entre pensamentos fugazes sobre os crimes que investigam. O buliço que decorre no bar pouco o incomoda. Está cansado e entra no sono com rapidez. Contudo, dorme por pouco tempo. Acorda por várias vezes, tem a sensação que vai dormindo aos soluços. Desperta, minutos depois adormece, desperta, minutos depois abre as pálpebras e volta ao estado de vigília. Repete este ciclo durante duas horas. Em seguida, levanta-se e lembra-se de espiar a praia, para ver se a calma permanece sobre as areias, ou se há algum movimento suspeito. Observa o mar azul, intenso, a iluminar a noite, pensa na beleza da paisagem que está a ver, e repara, então, em algo a mexer-se nas ondas. A principio, tal visão parece-lhe semelhante à duma bóia de salvação, deambulando entre as ondas. Pega nos binóculos para observar melhor o que lhe causou curiosidade e descobre que aquilo que observara é a cabeça de alguém que se debate nas águas.

 

Atenta melhor no que vê e verifica que é o seu irmão quem se revolve no mar. Ao aperceber-se de tão dramática constatação, Ricardo desce as escadas em frenesim, alerta o Sr. Favella e os clientes que estão no bar, dirigindo-se, a correr, para a beira-mar. Ao molhar os pés na água, verifica que João cambaleia entre as ondas, que lhe dão pela cintura. Vai depressa acudi-lo e ajuda-o a retornar à praia. O estudante de História está com a roupa rasgada, parece exausto, saído duma peleja, respira mal, tosse, cospe água salgada, vinda do fundo dos pulmões. Entre o desmaiado e o semiconsciente, é levado para o sótão, por alguns amigos do dono do estabelecimento. Deitam-no num dos colchões, onde fica a repousar, quase nada dizendo e procurando recuperar as forças do embate que deve ter tido com o assassino que quase o conseguira afogar. Após deixar o irmão a descansar no sótão, Ricardo precipita-se para a praia com uma lanterna nas mãos, e seguido por alguns acólitos que também pretendem descobrir o criminoso.

 

O seu irmão deve ter lutado como um bravo. Ainda por cima, andou a beber umas aguardentes com a malta, já não se devia ter muito bem nos pés, e, mesmo assim, aguentou com o gajo que o atacou.”, refere um dos clientes que esteve a conversar e a beber copos com João. Ricardo mal o ouve, concentra-se somente em iluminar o mar com a lanterna, em busca do criminoso. Calcula que o homicida, não conseguindo ter capacidade para afogar o irmão, e vendo-o a sair do bar, em correria, deixou o detective em paz, e fugiu a nado. Enquanto vasculha as águas, considera que o assassino deve ter sido surpreendido pelos poderes psíquicos de João, que o ajudaram a combater o inequivocamente atlético e perigoso meliante.

 

Não descobre o criminoso. Imagina que este deve estar a galgar a costa, a nado, para ir ter ao carro que estacionou ali perto, e que, certamente, utiliza para fugir, depois dos crimes cometidos. Sem hesitar, pede ajuda para o acompanharem na busca. Dois rapagões fortes, que também estavam no bar, oferecem-se. “Obrigado por virem comigo. Se o homicida corresponde ao perfil que eu penso, deve ser um demónio de força. Não vai ser fácil dominá-lo!”, avisa Ricardo, enquanto liga a ignição do seu Renault 9. Os dois rapagões, entusiasmados com a atmosfera policial, empolgante, da perseguição que em que irão participar, dizem ao detective para não se preocupar, que eles são fortes e irão apoiá-lo no que for preciso, se for necessário encarar o criminoso. Informam-no que, para além daquele improvisado parque de estacionamento ao pé do bar, existem mais dois baldios, junto aquela praia, onde se pode estacionar o carro. Ciente dessa informação, Ricardo dirige-se para o baldio que está mais próximo, à máxima velocidade que a sua viatura pode dar.

 

O automóvel de Ricardo galga a estrada semi-alcatroada, adjacente à praia, e, apesar das limitações do Renault 9, chega rapidamente a um dos baldios. Nesse espaço, encontra-se um carro estacionado, com os vidros embaciados. Antes do sociólogo pensar na situação perante os seus olhos exposta, um dos rapagões esclarece aquele cenário:” Naquele Peugeot não deve estar nenhum assassino. É o automóvel dum amigo meu, o Pedrosa. Costuma vir para aqui com a namorada...”. O outro rapagão lança um comentário indecoroso sobre o que o Pedrosa e a cara-metade estarão a fazer dentro da viatura, ao mesmo tempo que Ricardo, faz um peão e encaminha-se para o baldio que resta perscrutar.

 

A grande velocidade, o Renault 9 encaminha-se para o lugar que falta inspeccionar. O brilho da lua e a claridade das águas permite uma certa visibilidade na condução do sociólogo por aquela estrada mal iluminada e íngreme. Contudo, à entrada do baldio, o detective não repara nos diversos buracos que desfiguram o alcatrão. Os pneus do carro embatem nesses buracos e sofrem sevícias. Dois deles rebentam. Ricardo pára a viatura, sai do Renault 9 e contempla os danos causados pela decrépita estrada. Os rapagões também saem do carro e observam, receosos, um automóvel estacionado ao fundo do baldio, a uns cem metros de distância. Ricardo olha, desencantado, para os pneus lacerados, e, a seguir, atenta nos rostos expectantes dos seus acólitos. Repara no carro estacionado ao longe, junto a um pequeno muro branco, ténue fronteira que separa o baldio da praia.

 

Os três aproximam-se, cautelosos, da viatura que jaz solitária. Esta, um Ford novinho em folha, parece envolta em mistério por estar ali, como um ente obscuro, abandonado numa vastidão nocturna que assusta. Aquele baldio é o maior dos três que dão acesso à praia, um espaço bastante vasto que à noite ganha uma acentuada aura de mistério. Ricardo e os rapagões rodeiam o veículo, verificando que não há ninguém lá dentro. O sociólogo testa o manipulo da porta do condutor, e, para sua surpresa, abre o carro. As chaves deste estão na ignição. Tal descoberta alarma os três. Ricardo avisa-os que o dono do automóvel pode muito bem ser o assassino: “ Um indivíduo que é tão metódico ao ponto de afogar pessoas sem deixar rasto, não deixou as chaves na ignição por mera distracção. Ele deve ter sido surpreendido pela luz do meu carro, ao longe, na estrada que dá acesso a este baldio, e fugiu, deixando a viatura à pressa. Deve-se ter escapado por entre as dunas e as moitas da praia.”

 

Os rapagões, embora convencidos pelo que o detective disse, especulam, e levantam a hipótese de o dono da viatura ter ido para as dunas ou para as moitas, com o objectivo de se aliviar fisicamente, ou de fazer amor com alguma companheira. Perante tais especulações, Ricardo entra no Ford Abandonado, e começa a buzinar, num ritmo frenético, com a intenção de chamar a atenção ao proprietário do automóvel que alguém lhe está a mexer no carro. Ninguém responde ao chamamento de Ricardo. Este sai do carro, e, tal como os rapagões, fica a pensar no que fazer a seguir. Enquanto ponderam a acção a tomar, o silêncio naquele espaço torna-se ensurdecedor e enche-se de suspense.

 

Há outra possibilidade para termos encontrado o Ford desta maneira. O indivíduo que procuramos, quer-nos atrair para as moitas e para as dunas, de modo a mais facilmente nos atacar!”, exclama o detective, assustando os rapagões. Estes, apesar das suas corpulentas figuras, não conseguem impedir que o medo flua dentro deles, e temem que as sombras em volta se transformem num monstro de força extrema, capaz de os engolir num só trago. Os três decidem levar o Ford abandonado para o bar. Enquanto o conduzem de volta ao estabelecimento do Sr. Favella, Ricardo pensa em telefonar, com a maior urgência possível, para os agentes da PEL: “ Eu tenho a impressão que este carro é roubado. Vou averiguar isso com uns policias que conheço. Não me surpreende nada que o assassino use viaturas alheias para as suas deslocações homicidas. Se correr o risco de ser apanhado, abandona o carro, e não deixa pista alguma.”


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Terça-feira, 30 de Março de 2010

AS INVESTIGAÇÕES DA AGÊNCIA SIGGILON: O bar dos afogados - Capitulo 1

1

 

Os irmãos Azumbsen conversam, no escritório da vivenda que transformaram em sede da sua agência de detectives. Comentam o impacto relativo que o primeiro caso resolvido, ‘Os filhos de Kurt’, teve na opinião pública. “Ficámos um bocado conhecidos, mas as pessoas que nos contactam, só querem que investiguemos fenómenos paranormais e de espiritismo. Não tenho estômago para lidar, todos os dias, com espíritos e poltergeists! Devem julgar que somos médiuns!” Nós não somos médiuns! Somos investigadores criminais!”, queixa-se Ricardo, perante o esgar complacente do seu irmão. “Não sejas assim. Nunca estás contente com nada! Ganhámos dinheiro e alguma fama. Os agentes da PEL já nos prometeram que, quando tiverem casos obscuros de resolver, nos encarregam deles. De qualquer modo, se, nos próximos tempos, não surgir nenhuma investigação que valha a pena, temos mesmo que nos armar em médiuns para ganhar dinheiro e para sustentarmos o nosso negócio!”, avisa João. “Espero que não!”, replica o sociólogo, mostrando repúdio por essa opção futura.

 

Dias depois desta conversa, através dos contactos da polícia especial de Lisboa, os Azumbsen conseguem arranjar um caso para investigarem. “Telefonou-me, há pouco, um homem a dizer que é proprietário dum bar, nos arredores de Peniche, e que está desesperado por ajuda. Disse-me que nos oferece uma boa recompensa se solucionarmos o problema dele. Vamos ter com o homem, amanhã.”, declara João. “ Porreiro! Por falar em recompensa, temos de fixar com precisão os nossos honorários! Andamos há semanas para criar uma tabela de serviços e ainda não fizemos nada!”, alerta Ricardo, já a pensar no que poderão cobrar ao tal cliente de Peniche.

 

Acordam em cobrar tarifas diferentes conforme a investigação exigida. Se o caso implicar crimes menores ou outra qualquer tarefa menos exigente, como seja de espiar pessoas ou desencantar forças do além, os valores exigidos oscilarão entre os mil escudos e os cinquenta contos, mais despesas adicionais. Se tiverem de se haver com assassínios, ou com criminalidade em larga escala, os honorários estarão na casa dos cem aos mil conto. Qualquer dos dois irmãos acha adequada esta definição de valores. “Um bom homicídio paga-nos os salários dum mês inteiro!”, afirma João, com uma certa dose de sadismo, após rever a tabela de serviços. O estudante de História conduz o carro, rumo a Peniche. A viatura pertence a ambos, é um Renault 9, emblemático dos anos 80, que era azul e passou a ser negro, quando os Azumbsen, por intuição estética, decidiram mudar-lhe a cor, de modo a que ficasse mais espampanante. Contudo, a mudança de visual não impediu que o automóvel, já um bocado velhinho, se continuasse a degradar. João pisa no acelerador, mas mal consegue passar os 100, na Auto-estrada que os leva para fora de Lisboa, em direcção ao litoral da Estremadura. “Podíamos ter investido parte do dinheiro que ganhámos no primeiro caso que resolvemos. Podíamos ter comprado outro carro!”, declara João, frustrado por ver o seu automóvel a ser, constantemente, ultrapassado, por outras viaturas mais potentes. “ Não é que me chateie muito ser ultrapassado. Mas, há gajos que conduzem mal e que ultrapassam no limite. São atrasados mentais, ainda se espetam, e ainda nos matam!”, desabafa, meio-stressado por estar a conduzir há já algum tempo. “Nós investimos uns duzentos contos para pôr este Renault a funcionar mais ou menos! Não tenho culpa que o carro esteja tão podre, ao ponto de ter ficado na mesma, depois de lhe termos arranjado um motor novo e um escape porreirinho!”, diz Ricardo, respondendo às truculentas observações do irmão.

 

Conduzir automóveis é algo que qualquer dos Azumbsen gosta de fazer, caso a estrada esteja vazia e o trânsito seja nulo. Nenhum deles se dá bem com tráfego congestionado, irritam-se com facilidade, não são, de maneira alguma, condutores frios, regulares. Tiraram à sorte e calhou ser o irmão mais novo quem levaria o carro para os lados de Peniche. É devido, em parte, a esta incumbência, que João se apresenta de mau humor, enquanto Ricardo se mostra disperso pelas paisagens que o automóvel cruza, alheado nos seus próprios pensamentos, distante da má disposição do mano. “Se ganharmos mais massa com esta cena da agência, para além de comprarmos um carro novo, empregamos um motorista para nos levar aos sítios que for preciso!”, exclama João, antes de chegarem a Praia Velha, localidade onde vive o homem que os vai contratar.

 

A terra, uma vila pequena e simpática, parece não ter vivalma. É hora de almoço e quase não se vê gente na rua. “Devem estar todos a almoçar! Ouve lá, ó mano. Este fato que comprei, faz calor como o caraças! Tu e as tuas manias da imagem. Eu acho que não precisávamos de vir de fato!”, queixa-se João, enquanto põe um blazer azul escuro a condizer com o resto do que está a vestir. “ Temos uma agência e temos que exibir uma certa imagem. Este azul escuro exibe sobriedade, classe, bom gosto. São esses atributos que temos de mostrar aos nossos clientes! Não podemos andar ai, feitos pé rapados, a falar com quem vai utilizar os nossos serviços! É uma questão de marketing!”, explica Ricardo, enquanto retoca o nó da gravata, preocupando-se com a sua aparência. “Acho que aquilo que estás a dizer é correcto! Apenas penso que com este calor, podíamos ter vindo mais à fresca!”, refere João, enquanto imita os gestos do irmão, no alinhavar da sua figura e do seu fato. Os Azumbsen caminham pela vila, até que encontram um habitante da terra.

 

Os detectives perguntam-lhe se sabe onde é ‘O bar da praia velha’. O habitante esboça um esgar vivo, arregalado, e indica-lhes o caminho. Os dois irmãos agradecem a informação e dirigem-se para a orla da praia, uma zona bastante desértica, onde o homem disse que se situava o estabelecimento. “ Vão ao longo da costa. A primeira casa que virem é o sitio que procuram.”, indicara o indivíduo. Os Azumbsen caminham, caminham, e nunca mais acham o bar. Percorrem o passeio pedonal, paralelo à praia, numa passada que parece não ter fim. Depois de um quarto de hora a caminharem ao longo da costa, com as suas pernas pouco habituadas a calcar tanta distância, com os seus fatos a tresandarem de suor, avistam um conjunto de habitações construídas sobre o passeio pedonal e ladeadas por um longuilíneo muro de terra e rocha que se prolonga quase até ao longe da paisagem que aos olhos se depara.

 

Cruzam-se com um pescador que lhes confirma o destino, e lança um comentário que os surpreende: “ ‘O bar da praia velha’? O bar dos afogados? É ali, a primeira casa. As outras são instalações onde eu e os meus colegas vivemos, quando estamos na faina!”. Antes de entrarem no estabelecimento, os Azumbsen verificam que existem umas escadas ao lado do bar, e outras, mais ao longe, junto às instalações dos pescadores. Reparam que as escadas dão para um espaço baldio, situado atrás daquelas casas, nivelado acima delas, onde há um improvisado parque de estacionamento, assim como uma estrada semi-alcatroada. Os detectives dão conta que poderiam ter vindo por ela, de automóvel, poupando o esforço escusado que fizeram e o calor incansável que sentiram.

 

Observam o bar, enquanto meditam na sinistra alcunha que escutaram ser proferida pelo pescador. A fronte do estabelecimento, toda feita em madeira, lembra mais um saloon do deserto norte-americano, onde os cowboys se entretinham aos tiros, do que um bar à beira-mar, em pleno litoral atlântico. Os Azumbsen franqueiam a porta do estabelecimento e descobrem que este, por dentro, é também maioritariamente feito de madeira. Predomina o verde-escuro, que agrada aos olhos, tal a sobriedade e beleza com que reveste o lugar. Ao odor forte de pinho junta- se um intenso cheiro a maresia, vindo do exterior, fazendo daquele ar que se respira um bálsamo para os pulmões, tal a pureza e força que contém. A atmosfera poética do espaço enquadra-se com o que os dois irmãos observam em redor. À esquerda da porta por onde entraram, apresenta-se um generoso balcão, algo gasto, mas mantendo um porte clássico, imponente. Por trás do balcão, estantes e estantes de copos e garrafas, uma multitude de artefactos que deixam adivinhar noites generosas para os frequentadores do bar. Pelo resto da divisão, aglomeram-se mesas e cadeiras. Ao fundo desta, dispõe-se uma escadaria que serve de acesso a um sótão, por cima do bar. Debaixo da escadaria, avistam-se duas portas. Uma está entreaberta e os Azumbsen constatam-na como sendo a entrada para uma discreta cozinha onde, certamente, se fazem refeições de ocasião para os fregueses. Da outra porta, sai, com algum vagar, um homem meio-calvo, moreno, de barba densa e olheiras vincadas. É o Sr. Favella, o dono do estabelecimento. O seu semblante oscila entre o hesitante e o tristonho. Cumprimenta-os e eles apresentam-se. Ao saber que são os detectives, sorri um pouco, e a seguir convida-os a almoçarem com ele. “Fiz um pratinho de arroz de polvo. Acho que está bom. Não querem provar?”, pergunta o dono do bar. Os Azumbsen aceitam de bom grado o convite. Aquela caminhada toda fez-lhes fome. Enquanto almoçam, o Sr. Favella expõe-lhes o caso que o atormenta.

 

Chamei-vos cá por uma razão. Existe alguém, algum assassino, algum velhaco, que me anda a matar os clientes! Afoga-os no mar!”, exclama o dono do bar, para espanto dos Azumbsen. Estes, por dentro, fervem de adrenalina pelo que escutaram; têm um homicídio nas mãos para resolver e ouvem com a máxima atenção as palavras do Sr. Favella. “Abri este bar há dez anos, mais ou menos. Nunca ganhei muito dinheiro com ele, mas o que lucrava era suficiente para levar uma vida com os seus confortos. Até que, no ano passado, em 95, começaram a acontecer coisas estranhas. Em Março, um dos clientes mais antigos do bar desapareceu, depois de ter estado aqui, a conviver com a malta. Saiu porta fora, e durante três dias mais ninguém o viu. Acabou por ser encontrado à beira-mar, na praia, trazido pelas ondas, morto, afogado. Nesse verão, aconteceu a mesma coisa a outro cliente. Em Novembro, repetiu-se a tragédia. Em Dezembro, também. Foi nesse natal que decidi chamar a polícia para investigar estas mortes. Eles investigaram e não descobriram nada. Disseram que, provavelmente, qualquer dos quatro falecidos estava embriagado, foi nadar e afogou-se!”, desabafa o homem, enquanto coça a barba de nervoseira. Os Azumbsen questionam-no sobre o motivo que o levou a pensar que as pessoas afogadas teriam sido assassinadas. O Sr. Favella responde-lhes, dizendo que, apesar da polícia não ter descortinado vestígios de agressão, de violência na vítima de Dezembro, ele não ficou minimamente convencido com os argumentos das autoridades. Diz que os chateou tanto que eles tiveram de ir desenterrar o indivíduo afogado em Novembro, para lhe fazerem uma autópsia rigorosa. Contudo, essa operação apenas confirmou a perspectiva da polícia: A vítima de Novembro morrera única e exclusivamente de afogamento. Nenhum sinal de homicídio foi encontrado no seu corpo.

 

Duvidei dos agentes, na mesma. Foi nesse natal que comecei a ter a convicção que aquelas mortes não eram acidentais, mas sim causadas por alguém. Por alguma razão, nos seis meses deste ano, nada de trágico se verificou. Quando começava a ficar mais descansado e a afastar da cabeça esta ideia do homicida, eis que, no espaço de uma semana, dois fregueses meus morrem da mesma forma. Afogados. A partir daí, quase ninguém vem ao meu bar. Depois das mortes de Novembro e Dezembro de 95, o meu estabelecimento ganhou uma fama terrível, criaram-se inúmeros boatos sobre o bar, diziam que havia um maluco à solta na praia que me afogava os clientes, diziam que este sitio era amaldiçoado pelo demo, ou estava carregado de maldições, enfim, gerou-se uma boataria doida que me reduziu a clientela a metade. Quando se iniciou o verão, em Junho, voltei a ter mais clientes. Até que aconteceram as desgraças em Julho, há quinze dias, aproximadamente. A polícia fez o mesmo diagnóstico que das outras vezes. Fizeram-se autópsias aos cadáveres e não se encontrou nada que indicasse a possibilidade de ter havido mão criminosa nos afogamentos. Como devem calcular, fiquei desesperado, entrei em contacto com diversas forças da autoridade, até que falei com a PEL. Uns elementos dessa polícia recomendaram-me a vossa agência de detectives. Se me resolverem este caso, estou disposto a pagar o que vocês quiserem! Eu só quero é apanhar o sacana, o assassino, que me anda a afogar os clientes!”, roga o Sr. Favella, enquanto os irmãos pensam no caso e em eventuais perguntas a colocar ao homem.“ Disse que não tem inimigos. Mas não tem nenhuma ideia, por mais vaga que seja, de alguém que possa lucrar com a falência do bar?”, questiona Ricardo, enquanto anota os factos ditos pelo seu anfitrião.

 

Sempre fui uma pessoa diplomática. Nunca arranjei inimizades escusadas, mas também nunca fugi aos problemas. De qualquer modo não sei quem possa ganhar com isto tudo. Às vezes, vinham pessoas de fora, turistas, nacionais ou estrangeiros, e até me perguntavam coisas sobre o bar, se era lucrativo, que era bonito, que estava bem decorado...Neste momento, até ponho a hipótese de algum desses turistas ser o malandrim que, agora, quer levar o bar à falência.”, declara o Sr. Favella, remoendo por dentro a mágoa por não saber de quem desconfiar.

 

Sobre os últimos crimes...A polícia não descobriu nada? Não há testemunhas que tenham visto alguma coisa?”, pergunta João. “ São uns incompetentes. Disseram a mesma coisa que das outras vezes. Afirmam que as duas vítimas recentes pereceram por afogamento. Não encontraram vestígios de agressão, de estrangulamento, nada. Esse meu amigo que morreu, até nem gostava muito do mar. Era um tipo que tinha uma certa fobia da água. Eu até brincava com ele sobre isso...Coitado...E nem bebeu muito na noite em que faleceu...Como é possível que um homem praticamente sóbrio, avesso aos mares e ás ondas, possa ter ido oceano adentro por vontade própria!? Alguém o afogou, de certeza! De qualquer modo, ninguém viu nada. O ano passado, houve um rapaz que tinha visto uma das primeiras vítimas, a passear, tranquilamente, pela praia. Esse rapaz reparou que o homem em causa andava a passear à beira-mar, num passo lento e dava a impressão de meditar bastante. O rapaz foi a única testemunha que assistiu aos últimos momentos duma das vítimas. E, como vêem, o testemunho dele é inútil!”, considera o Sr. Favella, com desgosto.

 

Os Azumbsen continuam a conversar com o apoquentado anfitrião, no intuito de obterem o maior número de dados sobre os macabros incidentes, para poderem adoptar uma estratégia na investigação que irão fazer. Os dois irmãos ficam a saber que o sótão, situado por cima do bar, serve, na perfeição, de posto de vigia a toda a praia que está à frente do estabelecimento, pois comporta uma janela de vidro fumado, ampla, excelente para se observarem todos os movimentos que ocorram naquele perímetro. Ricardo sugere ao Sr. Favella, para que ele e o seu mano fiquem alojados no sótão, durante as próximas noites, de modo a poderem controlar o que se passa à volta do bar. O anfitrião deles considera tal sugestão uma boa ideia e promete arranjar-lhes uns colchões para que possam pernoitar com algum conforto.

 

O sótão é uma divisão de tecto baixo, contém algum espaço para os Azumbsen estarem à vontade. Revestido com madeira, como o bar, dá o aspecto de ser um abrigo cómodo, no qual a luz exterior, com serenidade, entra. O Sr. Favella leva-os até ao carro deles, para que os detectives possam voltar ao bar com o seu Renault 9, prontos a se instalarem, munidos das suas malas e de alguns artefactos úteis para a investigação, como os binóculos que Ricardo trouxe, já a contar com a possibilidade de usá-los. “Como calculámos que a investigação demorasse o seu tempo, trouxemos malas e utensílios, para o caso de ser necessário passar uns dias na vila de Praia Velha.”, diz Ricardo para o seu anfitrião. O sótão do bar torna-se, assim, no centro operacional, a partir do qual os detectives irão desenvolver as investigações.

 


publicado por Jackx às 16:19
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Quinta-feira, 25 de Março de 2010

AS INVESTIGAÇÕES DA AGÊNCIA SIGGILON: Os filhos de Kurt - Capitulo 6

João entretém-se, dedilhando o piano de sua casa, enquanto matuta na ideia de ganhar dez mil contos duma assentada. A proposta feita pelo agente Sousa Ramires, há alguns dias, vagueia pelo seu cérebro, estimula-lhe os neurónios. No entanto, o estudante de História lamenta-se por não terem conseguido captar mais nenhuma imagem dos miúdos desaparecidos. Lamenta-se e insiste em martelar as teclas do piano como se fosse um exímio executante, em momento de introspecção, buscando extrair daquele instrumento as melodias que lhe vão na alma. O som que sai do piano assemelha-se a tudo menos a uma melodia. Talvez seja correcto dizer que se parece mais com um ruído de sofrimento do que com um punhado de notas tocadas.

 

Nesse mesmo momento, Ricardo aplica-se na investigação do caso. Encontra-se, de novo, com uma das primeiras pessoas que avistou os miúdos vestidos de preto: A senhora idosa que descobrira uma dessas crianças, enrolada na sebe em frente ao seu prédio. Na sala de estar do seu apartamento, a senhora vai contando ao detective, aquilo que testemunhou. Por entre a descrição dos factos propriamente ditos, ela insere narrativas sobre assuntos triviais e evoca memórias da sua existência quando menina e moça. Tais acrescentos supérfluos desesperam o sociólogo, desejoso por uma descrição objectiva, sem floreados nem dispersões. Paciente, ele vai escutando a senhora, até que, concentrando-se num pormenor da informação que ela lhe transmitiu, fica mudo, em êxtase. A seguir, despede-se da senhora, agradece-lhe o testemunho e sai de sua casa, num passo apressado, rejubilante.

 

Enquanto João continua a massacrar o ar da sala, com as marteladas que dá no piano, Ricardo entra na vivenda, sobe as escadas e vai ter com ele. Sustendo o fôlego da correria efectuada, e mostrando o rosto esbaforido, ele entra na sala e começa a contemplar as várias paredes da divisão. Com os punhos, vai batendo nelas, num movimento cuidado, meticuloso. “ Mano, estás maluquinho? O que é que estás a fazer?”, questiona João, surpreso com aquele comportamento. “ Pelo som, estas paredes não são ocas...Deixa ver a parede que está ai, por detrás do piano.”, declara Ricardo, obcecado por algo que o irmão desconhece. Pelo som, verifica que a parede, onde o piano se encosta, é oca. Pede a João que o ajude a arrastar o pesado instrumento para longe dessa parede, de modo a poderem esburacá-la. O estudante de História acede ao pedido de Ricardo, embora considere que ele deva estar com algum delírio de ocasião.

 

Com um pontapé, o irmão mais velho perfura a parede. Com alguma facilidade, fazem uma abertura ampla, pois aquela parede da sala é, na realidade, uma edificação falsa, que oculta uma outra divisão mais pequena. Os Azumbsen olham para dentro do buraco criado, mas nada vêem, pois a sombra impõe-se à luz. No entanto, ouvem um respirar baixinho a desprender-se das trevas que predominam naquela divisão oculta. Com a ajuda duma lanterna, iluminam aquele espaço e descobrem os quatro miúdos vestidos de preto. Estes dormitam no chão, sobre mortalhas e panos velhos, rodeados de embalagens de batatas fritas e amarrotados pacotes de sumo. Parecem anjos pacatos pela penumbra cobertos. Encaixados nas suas orelhas, sobressaem densos bocados de algodão que os petizes, certamente, utilizavam, para não terem de escutar as sessões pseudo-musicais e desesperantes dos Azumbsen, quando estes o piano martelavam.

 

Era, de facto, uma divisão oculta!”, conclui Sousa Ramires, depois de ter vasculhado, com mais alguns policias, o refúgio onde os quatro petizes se escondiam e que servia de base para a vivência deles. “Num dos recantos da divisão, está um respiradouro fácil de remover, que dá para a entrada da casa. As crianças deviam usar o respiradouro para saírem do esconderijo, quando vocês não estavam, ou andavam noutra parte da vivenda, distraídos. Mas como é que descobriram os miúdos?”, pergunta o agente da PEL aos Azumbsen, com bastante curiosidade.

 

Foi um pormenor da descrição duma testemunha que levou à resolução do caso. Esta tarde, falei com uma senhora idosa que me disse ter visto, de novo, um dos miúdos desaparecidos. Ela avistou-o a passar pela frente do seu prédio, dois dias antes, com um iogurte na mão. Por acaso, ela reparou que o iogurte era da marca x. Enquanto ela continuava a descrever o que observara, eu lembrei-me que nesse mesmo dia, tivera uma discussão com o João, por causa dum iogurte que deveria estar guardado no frigorifico, para eu o comer. Lembrei-me, também, que esse iogurte era da marca x, que o miúdo vestido de preto levava na mão. A seguir, recordei-me que, na noite em que lutámos contra os ROTTGEN, tive de usar algodão embebido em água oxigenada, para sarar a ferida que tinha na mão com a qual agredira um dos cabeças rapadas. Quando mexi no saco onde estava o algodão, verifiquei que ele escasseava. Não disse nada ao meu irmão, calculei que ele o tivesse utilizado para algum fim. Comecei a pensar, então, na hipótese de os próprios miúdos vestidos de preto estarem a morar na nossa casa, em alguma divisão oculta, e a usarem as nossas coisas para interesse deles.”, relata Ricardo, perante uma audiência interessada de agentes e policias que tinham vindo à vivenda para recolher as crianças.

 

O sociólogo acrescenta que começou, de imediato a procurar o esconderijo deles, na sala de estar do primeiro andar da vivenda, por intuir que os miúdos se servissem do algodão para o colocarem nos ouvidos e protegerem os tímpanos das barulhentas sessões ao piano que os irmãos gostavam, por vezes, de fazer. “Eu sei que nós tocamos muito mal. Noutro dia, os nossos pais vieram ver a casa, mostrámo-lhes o piano e pusemo-nos a tocá-lo a quatro mãos. Os nossos pais fugiram da vivenda com uma energia que nunca tínhamos visto!”, graceja Ricardo, enquanto remata a narrativa que conduziu ao desenlace do caso.

 

Nessa noite, com um cheque de dez mil contos sobre a mesa da cozinha, os irmãos conversam e confraternizam, celebrando o feito alcançado e bebendo um whisky velho que foram comprar, especialmente, para festejarem o sucesso da investigação. “O homem estava muito contente. Com a solução deste caso, vai ser promovido, na boa.”, considera João. Ricardo também opina sobre a felicidade do agente: “ Ele estava feliz porque a rede pedófila que empregava os ROTTGEN foi, em parte, desmantelada.” O estudante de História fala doutro aspecto da investigação realizada; o facto de os petizes morarem há algum tempo na vivenda. João diz que sempre achara estranho não ter encontrado nenhuns fantasmas naquela casa, dado que os antigos inquilinos os tinham avisado de constantes barulhos inexplicáveis e de frequentes ocorrências paranormais. “ Os petizes souberam, desde o primeiro momento em que entrámos na vivenda, que nós possuíamos poderes semelhantes aos deles. Por isso, sempre se mostraram discretos. Sem dúvida alguma, bloqueavam os nossos esforços de penetrarmos na mente deles, através das fortes capacidades psíquicas que tinham!”, comenta o mais novo dos Azumbsen.

 

Os miúdos tinham um grande versatilidade de poderes. Viste como eles, através das ondas cerebrais, conseguiam projectar no ar o ‘Smells like teen spirit’, dos Nirvana? É muito difícil fazer isso!”, declara Ricardo, ainda espantado com as proezas extrasensoriais das crianças. “ Os miúdos tiveram empatia por nós. Devemos ter sido os primeiros humanos que eles encontraram com capacidades semelhantes. Se calhar, foi por isso que eles aceitaram que os ajudássemos e que foram, de bom grado, com as autoridades. Agora, de certeza que vão ser bem tratados e integrados na sociedade! Um brinde a eles! Um brinde aos miúdos!”, afirma, animado, João, brandindo o copo de whisky como um sabre reluzente. Ao fim da noite, transbordantes de álcool, põem-se a discutir, novamente, a nomenclatura da Agência. João quer colocar mais um G no nome e Ricardo objecta a tal ideia. Depois de muito discutir, o irmão mais velho cede e aceita que a empresa de detectives se passe a chamar ‘Agência Siggilon’.

 

FIM


publicado por Jackx às 21:23
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Quarta-feira, 3 de Março de 2010

AS INVESTIGAÇÕES DA AGÊNCIA SIGGILON: Os filhos de Kurt - Capitulo 5

Na manhã seguinte, os Azumbsen dirigem-se a uma mercearia próxima da vivenda, para iniciarem a ronda de averiguações por estabelecimentos donde os estranhos petizes possam ter roubado comida. Chegam à loja e constatam que o dono desta nunca viu nada de estranho a passar-se no seu estabelecimento, nem deu pelo desaparecimento inexplicável de produtos. Os Azumbsen, depois de conversarem um pouco com o dono da mercearia, afastam-se e começam a debater qual a será a próxima loja a indagar. João tem, então, uma ideia, e quer mostrá-la ao irmão. Pede-lhe para ficar a vigiar a mercearia, enquanto ele se desloca para perto dum beco que fica a dez metros de Ricardo, na rua anexa ao estabelecimento. A seguir, João pergunta ao irmão se alguém está a fazer compras na mercearia. Este diz-lhe que não, e que o estabelecimento se encontra, neste momento, vazio. João, ajoelhado em frente ao beco, põe-se a fazer um exercício de telepatia. Ricardo repara que uma das maçãs que se encontra exposta num cesto de frutas, no lado de fora da mercearia, começa a rolar para o chão, e, lentamente, vai-se movendo até percorrer o caminho que leva ao beco.

 

A maçã pára de se mover quando fica diante de João. Este recolhe-a com semblante de triunfo. “Vês? Usei as minhas capacidades telepáticas, e consegui roubar esta maçã. Se os miúdos têm poderes semelhantes, não lhes é difícil sobreviver.”, conclui João, depois da demonstração efectuada. “Tens razão. Deve ter sido por isso que a senhora de idade viu um dos miúdos vestidos de negro, enroscado nas sebes, ali, na rua de cima. Ele devia estar a tentar trazer até si alguma peça de fruta, através da telepatia, quando foi surpreendido pela mulher.”, afirma Ricardo. “Os homens das mudanças viram um desses putos a passar em frente à nossa casa. Não me espantava nada que o miúdo estivesse a fugir da zona próxima da mercearia. Provavelmente, também foi surpreendido, perto desse local, assustou-se e desatou a fugir, cruzando-se, então, com os homens das mudanças, quando estes chegavam à vivenda!”, considera João, lembrando-se da primeira vez em que ouviram falar das crianças vestidas de preto.

 

Os Azumbsen constatam, também, que na rua em frente à praceta onde foram avistadas as crianças, existe um pequeno supermercado, o que explica, de certo modo, a presença mais frequente dos petizes nesse local. Durante a tarde, os irmãos vagueiam por Oeiras e arredores, à procura de mais estabelecimento que possam ter sido larapiados pelos miúdos. Obtêm alguns testemunhos interessantes, o que lhes permite delimitar uma zona de acção onde poderão vasculhar os caixotes do lixo existentes nesse espaço, esconderijos plausíveis de serem utilizados pelas estranhas crianças.

 

Nessa noite, os Azumbsen cumprem o objectivo a que se propuseram. Na zona previamente demarcada, verificam se os caixotes de lixo da área podem funcionar como albergues para os petizes. Rebuscam a zona e nada encontram. Apenas descobrem um velhote, um sem-abrigo, a dormir sobre um cobertor escafiado, em cenário deplorável. Sentem pena do homem, e vão-lhe buscar alguma comida, uma refeição para a noite. O sem-abrigo agradece a gentileza e devora o jantar inesperado. Quando se preparam para abandonar o local, Ricardo lembra-se de mostrar a foto da criança que aparece no vídeo “Pride” dos U2, ao velhote, para indagar se ele vira, nas proximidades, miúdos parecidos com o da fotografia.

 

O sem-abrigo responde de modo afirmativo: “ Uma vez, decidi ficar neste mesmo sítio, depois de escurecer, a descansar. Quando estava quase a adormecer, apareceram uns rapazinhos pequenos. Não sei porquê, tive a impressão que eles deviam andar a dormir aqui, de vez em quando. Ficaram a olhar para mim e depois foram-se embora. Deixaram-me um saquinho com umas frutas e umas embalagens de sumo.”, refere o velhote, prendendo a atenção dos Azumbsen. Estes ficam a saber que o homem os encontrou, novamente, semanas mais tarde, no cemitério de Oeiras. “Passei por lá, à noite, para ver a tumba do meu falecido irmão. Um dos miuditos estava ali ao pé, a vaguear. Perguntei-lhe o que andava por ali a fazer. Ele sorriu e fez-me sinal para o acompanhar. Fomos ter a um recanto do cemitério, onde encontrei mais três rapazinhos, cobertos de agasalhos. Tentei conversar com eles mas não consegui. Eles falavam numa língua estrangeira e não sabiam Português. Foram simpáticos. Deram-me outro saquinho com comida. Despedi-me deles, e fui-me embora.”, diz o sem-abrigo, completando a narrativa.

 

Satisfeitos com a informação do homem, os Azumbsen dirigem-se, céleres, ao cemitério, esperançados em encontrar os miúdos desaparecidos. Por dentro, sentem-se algo nervosos, pois quando visitam lugares fúnebres, de quando em quando, sofrem experiências de visualização de espíritos ou ficam rodeados por energias intensas que lhes desgastam os sentidos.

 

Deambulam pelo cemitério, explorando-lhe os vários recantos, numa tentativa de encontrarem os miúdos. Num desses recantos, junto a um dos muros amarelos, altos, que circundam o local, descobrem uns trapos espalhados pelo chão. Verificam que estes poderiam muito bem ser os agasalhos descritos pelo sem-abrigo. Nesse instante, são surpreendidos por dois homens estranhos, de cabeça rapada e aspecto corpulento, que olham para eles e trocam frases numa língua estrangeira. Apesar da escuridão, graças à luz dos candeeiros que estão no exterior do cemitério, os Azumbsen reparam que qualquer daqueles energúmenos possui uma cicatriz enorme a atravessar o crânio bem redondo. Os dois irmãos afastam-se, lentamente, daquelas assustadoras criaturas, que os começam, então, a seguir, com um semblante ameaçador. Os Azumbsen aceleram o passo, e num ápice, estão a correr, buscando fugir dos cabeças rapadas, que os perseguem, proferindo palavras imperceptíveis para os detectives portugueses. Na correria, os indivíduos de cicatriz na cabeça conseguem deter Ricardo. Este surpreende um dos atacantes com dois murros no nariz. Contudo, o cabeça rapada mostra-se inflexível, e, em conjunto com o outro seu acólito, imobiliza Ricardo no solo. Continuam a proferir um dialecto incompreensível, e um deles saca uma faca luzidia, de afiadas proporções, ameaçando golpear o sociólogo.

 

João pensa, instintivamente, em atacá-los, mas, a seguir, lembra-se de usar os seus poderes mentais. Ricardo debate-se contra os agressores, junto a uma tumba cuja lápide de mármore é bastante volumosa. João, através da telepatia, começa a mover a lápide. Esta treme, range, parecendo entrar em ebulição para explodir, ou lançar-se, com toda a força, no ar. O movimento da pesada lápide põe em pânico os dois cabeças rapadas. Estes acreditam que a tumba vai saltar, ou que dela surgirá algum tenebroso espirito. Largam Ricardo e desatam a fugir, em galope tresloucado. Apressados na fuga, evaporam-se nas sombras que envolvem o cemitério.

 

Atarantado pelo que sucedeu nos últimos minutos, Ricardo levanta-se do chão e sacode a poeira da roupa, ao mesmo tempo que sente a mão direita dorida, devido aos murros que deu a um dos cabeças rapadas. Observa o seu irmão numa conversa peculiar com a tumba cuja lápide aproveitou para assustar aqueles imprevistos inimigos. “Que estás a fazer?”, questiona Ricardo, enquanto se aproxima de João. Este responde-lhe com uma justificação metafísica: “ Estou a pedir desculpas ao espirito deste caixão, por ter usado a sua lápide. É importante, para mim, ficar em paz com a alma que aqui mora. Não quero que ela pense que a profanei.” Pouco depois do estudante de História dizer isto, desencadeia-se um barulho de tiros e confusão, à entrada do cemitério, não muito distante do lugar onde os Azumbsen se encontram. Numa passada rápida, os dois irmãos dirigem-se para o local onde surgiu o rebuliço. Quando lá chegam, deparam-se com um cenário caótico. Vários carros-polícia, juntamente com outros automóveis, abundam no exterior do cemitério, estando estacionados de forma desordenada, uns à frente dos outros. Diversos policias e agentes à paisana acabaram de deter os cabeças rapadas.

 

Um dos agentes vai ter com os Azumbsen, e cumprimenta-os. Quer falar com eles, em privado, sobre o que aconteceu. Os dois irmãos convidam-no a tomar um café na casa deles, convite que o agente, prontamente, aceita. Enquanto se afastam do cemitério, os detectives reparam no comissário Antunes que, ao longe, cordato, lhes acena, ao mesmo tempo que ajuda outros policias a meterem os cabeças rapadas num dos carros da autoridade. Na vivenda dos Azumbsen, o agente apresenta-se:” Chamo-me Sousa Ramires. Como devem ter calculado, pertenço à PEL, mais especificamente a uma secção que colabora, em regime de permanência, com a INTERPOL. O agente que cumprimentaram, o comissário Antunes, é o coordenador principal dessa secção.”

 

De facto, calculámos que fosse possível estarmos a ser seguidos por vocês. Não me diga que pensavam que fossemos nós os raptores dos miúdos?”, questiona Ricardo. O agente admite que, a dada altura, os Azumbsen fossem suspeitos. Mas o aparecimento dos cabeças rapadas e o comportamento destes em relação aos detectives, dissipou as dúvidas à PEL. “ Devem-se estar a interrogar sobre quem seriam aqueles indivíduos ameaçadores que vos seguiram até ao cemitério. Pois bem. Os dois cabeças rapadas são os manos ROTTGEN, meio-holandeses, meio-malásios, e faziam parte da lista dos cem mercenários mais procurados em todo o mundo. Quando a PEL vos começou a investigar, reparámos que eles vos seguiam também. Cedo depreendemos que vocês eram, de facto, detectives em busca dos miúdos e que não pertenciam a nenhuma organização criminosa. Quando os ROTTGEN vos atacaram, no cemitério, tínhamos um sniper a controlar-lhes os movimentos. Felizmente, ele não teve de disparar. Já suspeitávamos que, à mínima hipótese, eles vos abordariam com intenções perigosas.”, explica o agente, elucidando os Azumbsen.

 

Então, nós estávamos a ser vigiados pelos mercenários e por vocês! Bem que pressentíamos isso...”, comenta Ricardo, recordando-se das inúmeras vezes em que eles se sentiam seguidos por alguém. “ O anúncio que colocaram nos jornais, chamou-nos a atenção, porque se relacionava com um caso que estava a ser investigado pela INTERPOL, no qual estariam implicadas poderosas redes mafiosas. Os miúdos que fugiram do orfanato têm poderes paranormais. Isso, é provável que vocês já soubessem. No entanto, sobre os petizes, há um facto que não vos foi contado. Eles fugiram duma espécie de mafia que faz comércio de crianças. Tal organização tem, por hábito, raptar miúdos de instituições de inserção, em todo o mundo, para os lançar numa rede perversa, execrável, de prostituição infantil. As famosas crianças vestidas de negro foram arrancadas do orfanato onde viviam, mas conseguiram, graças às suas capacidades sobre-humanas, libertar-se das garras dos raptores. Viram as cicatrizes que marcavam as cabeças dos ROTTGEN?”, pergunta o agente aos dois irmãos, após breve dissertação sobre o caso.

 

Sim. Eram umas cicatrizes tremendas. Mesmo com a noite mal iluminada pela frente, pudemo-nos aperceber das marcas profundas que eles traziam.”, responde João, relembrando o instante em que vislumbrou os mercenários. Sousa Ramires informa os Azumbsen que foram os ROTTGEN quem levou os miúdos do orfanato perto de Seattle. Ele afirma que, segundo várias testemunhas, alguns dias depois do rapto dos petizes, dois energúmenos foram vistos a sair duma viatura, na berma duma auto-estrada, nos arredores da cidade americana. Tais indivíduos mostravam-se atordoados e tinham as mãos fixas nos crânios. Tentavam estancar os fluxos de sangue que das suas cabeças jorravam, em fios espessos.

 

De acordo com essas mesmas testemunhas, quatro miúdos saíram, então, do automóvel e desapareceram na vegetação que ladeava a berma. Os energúmenos feridos eram os ROTTGEN, e pelos dados dum hospital local, foram suturados com vinte e cinco pontos na cabeça. Ou seja, os miúdos devem ter usado os poderes psíquicos para neutralizarem os raptores, e, depois, fugiram deles.”, afirma Sousa Ramires perante o olhar interessado dos Azumbsen. “Nestes dois anos, fomos tentando detectar os miúdos, mas tal missão tem-se revelado penosa. Ao que parece, eles percorreram as Américas, e, de alguma maneira, chegaram a Portugal, no fim de 1995. Revelaram-se mestres na arte da sobrevivência e do estar incógnito. Graças ao caso que ocorreu em 1980, e mais alguns avanços nossos, ligeiros, na investigação, pudemos obter novas informações sobre o comportamento táctico, psicológico, social, grupal, dos quatro miúdos. Mas tem sido complicado. O dossier referido a estas crianças, intitulado, simbolicamente, ‘Os filhos de Kurt’, tem sido muito intrincado e quase impossível de resolver. ”, refere o agente, despertando em João uma questão que lhe parece premente: “Simbolicamente? Eu penso que o facto de eles serem denominados ‘Os filhos de Kurt’, não é apenas simbólico. Não acha?”. “Sim. Essa denominação tem a ver com a coincidência dos miúdos terem sido raptados no mesmo dia em que o vocalista dos Nirvana morreu. Há quem diga, tanto na INTERPOL como na PEL, em jeito de mitificação ou de brincadeira, que os rapazinhos parecem guiados por um espirito que os protege e abençoa, pela alma de Kurt Cobain. Eu, como achei este caso extremamente estranho e único, e como já vi tantas coisas esquisitas, absurdas, inexplicáveis, na minha vivência enquanto agente da ordem, admito todas as hipóteses!”, exclama Sousa Ramires, reportando-se a uma certa aura sobrenatural que envolve aquele caso.

 

 

E o pormenor dos miúdos se vestirem de preto? Será apenas coincidência que estas criancinhas, tanto as de 80 como as de 94, andem sempre de negro vestidas?”, inquire Ricardo, enquanto pensa nessa característica única. “ Um dos miúdos que fugiu em 80, disse-nos, há ano e meio, a resposta a essa questão. O preto não foi uma cor escolhida ao acaso. As crianças usam o negro porque agem à noite. Elas viajam à noite, procuram comida à noite, vivem à noite, excepto quando precisam, por necessidade extrema, de actuar de dia. Os petizes usam tal cor para se camuflarem nas sombras, como o felino usa a sua pele para se confundir com a floresta, como o soldado se camufla de determinada maneira, para permanecer oculto aos olhos dos outros. Usam o preto para se manterem incógnitos pelos lugares que passam, e, sem dúvida, para se esconderem das mafias pedófilas que os procuram. Obviamente, estas crianças desconfiam de quase toda a gente, e, por isso, nunca se entregaram às autoridades.”, explica o agente, satisfazendo a curiosidade dos Azumbsen. Terminado o relato, Sousa Ramires despede-se dos irmãos, dizendo ter esperança que a detenção dos ROTTGEN possa levar ao desmantelamento da rede pedófila que anda à solta. Antes de sair da vivenda, o agente confidencia a Ricardo, que o acompanha à porta, uma particular opinião. Ele suspeita que os detectives tenham poderes extrasensoriais, pois o mesmo rapaz que lhe dissera sobre a razão de vestir de preto, também alertara para o facto de mais duas pessoas dotadas de capacidades paranormais poderem estar envolvidas na investigação das crianças foragidas. Antes de se despedir, encoraja o sociólogo a aplicar-se no caso: “Se vocês encontrarem os miúdos, nós, a PEL, a INTERPOL e o FBI, estamos dispostos a dar-vos uma recompensa de dez mil contos, desde que, depois, façam uma publicidade discreta ao caso. Se conseguirem achá-los, garanto-lhe que, mais tarde, nós próprios nos encarregaremos de vos arranjar clientes para agência.”

 


publicado por Jackx às 12:44
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Domingo, 7 de Fevereiro de 2010

AS INVESTIGAÇÕES DA AGÊNCIA SIGGILON: Os filhos de Kurt - Capitulo 4

Mais um dia se sucede e a frustração persiste. Os Azumbsen parecem incapazes de usar o seu potencial extrasensorial para a resolução do mistério. Desencantado, depois de mais uma sessão falhada, Ricardo senta-se ao piano e desfere violentos golpes nas teclas, provocando uma sinfonia ensurdecedora. Alheio àquele alarido, João reclina a cabeça sobre a mesa da sala de estar do andar de cima da vivenda e tenta descansar. Qualquer dos dois irmãos está fatigado, psicologicamente, por causa da investigação levada a cabo e devido a mais uma discussão improdutiva entre ambos.

 

Ricardo comparava o inêxito da investigação à sua situação afectiva:” O que me lixa é que todo este impasse a que chegámos, na investigação, me faz lembrar aquilo que me acontece com as gajas. Nada. Não acontece nada. Ultimamente, elas parecem fugir de mim, assim como a solução deste caso também me parece escapar. Parece uma maldição! A vida estagna, fica paralisada e nunca mais muda. Não encontro nenhuma miúda de que goste, não encontro uma saída para esta investigação esquisita em que nos metemos e que só serve para nos enganarmos durante um pouco mais de tempo, até vermos que o investimento na agência de detectives não vai dar em nada! EM NADA!” O irmão mais novo rebateu aquele argumento, dizendo que as coisas, um dia, iriam mudar de vez, afirmação que despoletou um intenso ataque de pessimismo por parte de Ricardo e consequente discussão.

 

Agora, João tenta abstrair-se daquela realidade frustrante. Imune ao barulho que o seu irmão mais velho arranca do piano, ele vai procurando escutar o som que flui na madeira da mesa, à qual o seu ouvido está encostado. Então, surge-lhe à frente dos olhos uma violenta sucessão de imagens. Vislumbra os quatro miúdos vestidos de negro, metidos numa divisão sombria, composta, na aparência, por paredes metálicas. Os rostos dos petizes estão rígidos, sérios, preocupados. As duas imagens seguintes, que se impõem na mente de João, são fotografias clássicas de dois ícones do rock do último quartel do século XX: Ian Curtis a fumar um cigarro olhando a câmara fotográfica com uma expressão enigmática, e Kurt Cobain, de face pesada e melancólica, a sugerir uma tristeza pantanosa onde a alma se atola.

 

As três imagens rodopiam entre elas, na cabeça de João, por breves segundos, e depois desaparecem, deixando-o num estado de semi-transe. Numa voz ainda possuída por um estado alterado, ele chama o irmão, num timbre entre o arrastado e o poderoso. Ricardo escuta o seu chamamento e cessa de martirizar o piano. “Recebi qualquer coisa de importante, mano...”, refere João, enquanto recupera o tom de voz normal.

 

E com as imagens que recebi, começo a desvendar um bocado da história dos putos vestidos de preto. Vi os miúdos desaparecidos encafuados num espaço escuro, apertado, que me deu a impressão de ser um caixote de lixo. Lembras-te do que disse o homem que passeava o cão, quando houve o incidente do Celso? O homem disse que um desses miúdos cheirava mal. Não me surpreendia, se eles estivessem a viver em algum caixote do lixo e que andassem por ai, a viver de pequenos furtos a mercearias e supermercados. Se tiverem poderes psíquicos, como sugeriu o comissário Antunes, é provável que não lhes seja difícil sobreviver. Podem usar os poderes para irem buscar comida mais facilmente”, considera João, perante o olhar pensativo de Ricardo que, após breve meditação, afirma concordar com as impressões do irmão: “É possível! É muito possível! Amanhã, temos de percorrer os supermercados, mercearias, cafés, do concelho, para ver se topamos algum desaparecimento estranho de bens, de comida. Se os miúdos andarem nesta zona, e viverem por sua conta, têm de se alimentar! E não podem viver em nenhum sitio normal. Se se quiserem manter incógnitos, anónimos, terão de escolher um local isolado e improvável para morarem!”

 

 

 

 

Contente por ver o irmão mais motivado com o caso, João acrescenta alguns raciocinios sobre a experiência paranormal que sofreu há poucos minutos: “ Apareceu-me, também, na mente, as imagens de dois músicos conhecidos, do Ian Curtis e do Kurt Cobain. Imagens de fotografias deles, que pareciam envolver a outra visão recebida, dos putos vestidos de preto. Haverá alguma ligação entre estas imagens e a cena que estamos a investigar?” Ricardo responde-lhe que sim, e que ele próprio, por dedução e graças a uma certa cultura musical, concluíra que os desaparecimentos dos miúdos, em 1980 e em 1994, ocorreram na mesma altura em que os malogrados cantores faleceram.

 

João pensa um bocado, e expõe, com rapidez, uma teoria sobre essa curiosa correlação: “ Se essas crianças têm poderes psíquicos, podem, com facilidade, detectar fluxos de energia negativa que surgem no ar, produzidos pelas pessoas que ficaram consternadas com a morte desta ou daquela personalidade, cujo carisma e impacto na opinião pública se fazia sentir com relevância. Essas crianças, tanto as de 80 como as de 94, podem ter ficado perturbadas por esses fluxos de energia, e fugiram dos locais onde estavam, a viver. É uma teoria um bocado radical, mas, se virmos bem, os dois desaparecimentos registaram-se em zonas próximas dos lugares onde os ícones musicais faleceram. Ian Curtis em Inglaterra, Kurt Cobain em Seattle. Esses fluxos de energia negativa, que referi, podem ter mexido com a cabeça dos miúdos, ainda muito novos e pouco adaptados às capacidades extrasensoriais que possuíam, e fez com que eles fugissem dos orfanatos onde moravam, para se afastarem daquelas formas de energia que os atormentavam, enveredando, por uma vida errante que não sabem, agora, como findar.”

 

Ricardo parece algo céptico com as explicações tão metafísicas do irmão: “ É um bocado alucinada essa explicação. Queres dizer que eles captaram a depressão das pessoas que sentiram a perda dos músicos e ficaram afectados por isso?”. “ Acho que sim. E ficaram deprimidas ao ponto de andarem sempre de preto, como que para velarem as mortes ocorridas. Eu acredito que os miúdos que fugiram há dois anos estão de luto. De luto por Kurt Cobain, assim como os miúdos que desapareceram em 80, estavam de luto por Ian Curtis.”, declara João, despertando mais questões em Ricardo.

 

O Kurt Cobain tinha um certo impacto na sociedade, em termos culturais, e admito, perfeitamente, que a morte dele tenha comovido massas. Mas o Ian Curtis tinha uma influência muito residual na comunidade inglesa... A banda dele, os Joy Division, só depois da morte do vocalista, é que se tornaram num fenómeno de culto.”, considera o sociólogo. “Basta termos capacidades extrasensoriais, para podermos ficar afectados por pessoas perturbadas pela morte de alguém, independentemente do número, da quantidade. Aliás, isso já nos aconteceu.”, explica João, com um argumento que convence, mais ou menos, Ricardo. O irmão mais novo lembra-se da própria existência deles, para reforçar a sua tese: “ Quando éramos putos, os primeiros fenómenos transcendentes que nos aconteceram, fossem visões premonitórias, vislumbres de espíritos, ou emoções inesperadas, assustaram um bocado...Mas, tínhamos uma estabilidade afectiva, uma família unida, e, de algum modo, esses condicionantes ajudaram-nos a ultrapassar as marcas dessas primeiras experiências extrasensoriais. Agora, imagina esses putos, órfãos. Sem família para os ajudar, num ambiente que, se calhar, nem era o melhor, como poderiam lidar com o que começavam a sentir, a experimentar? Passaram-se, descontrolaram-se, fugiram!”

 

Tens alguma razão. Continuo a achar essa tua tese algo inverosímil, mas até pode conter um fundo de verdade.”, afirma Ricardo, antes de ser atacado por um pressentimento súbito. Corre para a janela, observa a penumbra em redor da casa. Teve a sensação de que alguém estava a vigiar a vivenda. “ Seriam os miúdos? Se eles têm poderes extrasensoriais, podem-se ter apercebido que andamos atrás deles.”, especula Ricardo. “Podiam ser os miúdos. Podiam ser os agentes da PEL, que, por alguma razão, desconfiam de nós e nos andam a seguir.”, opina João.

 


publicado por Jackx às 16:44
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Domingo, 17 de Janeiro de 2010

AS INVESTIGAÇÕES DA AGÊNCIA SIGGILON: Os filhos de Kurt - Capitulo 3

Os irmãos põem anúncios em vários jornais regionais e nacionais, deixando alguns panfletos nos prédios à volta da praceta onde Celso teve o ataque de pânico. O primeiro método, do anunciar na imprensa, revela-se desastroso. Durante vários dias, chovem telefonemas para a vivenda, chamadas sarcásticas, ofensivas, obscenas, das quais nenhuma se aproveita para a investigação. Contudo, o segundo método, dos panfletos distribuídos nas vizinhanças da praceta, acaba por dar alguns frutos.

 

Duas domésticas contactam os Azumbsen, afirmando terem visto as esquisitas crianças vestidas de negro. Os dois irmãos deslocam-se, então, à casa das testemunhas. Ricardo, para além do caderno onde vai registando os desenvolvimentos da pesquisa, leva também uma fotografia onde aparece a criança vestida de negro, que surgia no vídeo “Pride”, dos U2. Ele obteve-a, graças a um amigo seu, fanático da banda irlandesa, que possui um imenso arsenal de artefactos e curiosidades relacionadas com o grupo de Bono. “ De facto, as crianças que vi na praceta eram muito parecidas com essa!”, exclama a primeira doméstica que entrevistam, ao contemplar a fotografia arranjada por Ricardo. Ela relata que vira essas crianças à volta do baloiço, por duas vezes, a brincarem, à noite.

 

A segunda testemunha, outra doméstica, refere que viu os miúdos por mais vezes, até em pleno dia, a atravessarem a praceta, em conversa agitada. Ela reparou neles, porque sendo as crianças tão pequeninas aos olhos dela, pareciam estar empenhados numa conversa séria, pois discutiam muito. Os dados recolhidos pelos Azumbsen não foram muito esclarecedores, mas João atentou num pormenor singular, durante as entrevistas às donas de casa: “Não topaste uma cena curiosa nos putos? Nos filhos das domésticas, que só deviam ter uns mesitos de vida? Um estava numa daquelas cadeiras para bébés, à espera de comer a papa, e não parava de trautear uma melodia. O outro puto, na outra casa, estava a brincar naquelas espécies de gaiolas onde se metem as criancinhas para estas não fazerem asneiras. E cantarolava a mesma melodia.”. “Qual é a surpresa disso? Se calhar, qualquer deles estava a imitar o do-ré-mi da mesma canção de embalar!”, considera Ricardo. “Pois! Acontece que o refrão que os dois estavam a reproduzir, pertence ao “Smells like teen spirit”, dos Nirvana. E não penso que essa canção seja usada para canção de embalar!”, refere João. Ricardo interpreta o facto como uma simples coincidência. O seu irmão, depois de matutar no sucedido, acaba por concordar com ele, pois não vê outra explicação para aquilo que presenciou.

 

No dia seguinte, mantém-se a nota dominante: Dos anúncios dos jornais, só resultam telefonemas jocosos e cheios de impropérios. Mas, para os dois irmãos, mais frustrante do que isso, é a sensação de não conseguirem percepcionar, com os seus poderes extrasensoriais, nenhuma imagem das quatro crianças vestidas de negro. Nessa manhã, passam horas tentando obter, na mente, informação psíquica sobre os petizes misteriosos. Todavia, os seus esforços são vãos.

 

À tarde, deslocam-se a diversas esquadras da linha de Cascais, na tentativa de descobrirem se as autoridades registaram queixas ou ocorrências que possam estar relacionadas com a investigação em curso. Todavia, tais diligências também se revelam infrutíferas. À noite, recebem um telefonema que os volta a animar. Um dos inspectores da PEL(policia especial de Lisboa), convida-os a encontrarem-se com ele, no seu gabinete. Tanto João como Ricardo depositam alguma esperança no que o inspector lhes poderá dizer.

 

São dez da manhã. Os irmãos Azumbsen estão sentados no gabinete do comissário Antunes, e aguardam que este termine alguns telefonemas que teve de fazer, para lhes comunicar algo de importante. O comissário é uma autentica reencarnação do detective Poirot, como Agatha Christie o idealizava, ainda que o seu bigode seja mais farfalhudo e menos cuidado que aquele que a famosa personagem de ficção apresentava. Antes de iniciar a narrativa que lhes interessa escutar, ele pergunta-lhes se, por acaso, os Azumbsen são gémeos, pois ficou impressionado com as parecenças faciais entre ambos. Os irmãos realçam que, de facto, são muito parecidos, mas a resposta à questão do comissário é negativa. Ricardo tem 26 anos e João é três primaveras mais novo. A semelhança é muito acentuada, porém, há uma característica que os distingue. O irmão mais velho tem o cabelo aloirado, enquanto que o mais novo é moreno. “Tirando esse facto distintivo, somos, efectivamente, quase iguais de rosto.”, considera Ricardo, dissipando as dúvidas ao comissário.

 

O inspector da PEL começa, então, a discorrer sobre o motivo pelo qual os chamou ali: “ Reparei, há dois dias, no anúncio que puseram em vários jornais, à procura de pessoas que tenham visto, em circunstâncias estranhas, crianças vestidas de negro. Naturalmente, fui indagar sobre os autores desses anúncios e descobri que vocês dois fazem parte duma nova agência de detectives que anda a investigar o caso. Com certeza que têm interesse pela investigação policial, pela criminologia, e, por isso mesmo, simpatizo com a empresa que abriram. É para demonstrar essa simpatia que vos chamei, no intuito de ser útil e poder vos ajudar nessa tarefa tão nobre que é descobrir o paradeiro de crianças desaparecidas. Há dois anos, em 1994, ocorreu o desaparecimento de quatro petizes, que viviam num orfanato próximo de Seattle. Os miúdos deviam ter, na altura, dois, três anos de idade. Nos dias posteriores ao desaparecimento, diversas pessoas, em localidades das redondezas, observaram fenómenos muito parecidos com os que vocês puseram nos anúncios, de miúdos a andarem sozinhos nas ruas. Não acham que é um bocado intrigante, esta coincidência?”

 

Os três entabulam, então, uma tertúlia agradável sobre criminologia e sobre o caso que a agência Sigilon está a tratar, e consideram ser muito provável que os petizes fugitivos de Seattle sejam os mesmos que se encontram, agora, em Oeiras. Antes de se despedirem e agradecerem a preciosa informação que o comissário Antunes prestou, este conta-lhes uma história verídica, passada entre 1980 e 1982:

 

Em Maio de 1980, dois rapazinhos de seis anos desapareceram duma casa de adopção, situada numa vila, algures na Inglaterra. Nos dias seguintes, os habitantes dos arredores falavam que tinham visto duas crianças vestidas de preto a vaguear por jardins, ruas, e florestas próximas. Dois anos depois, essas mesmas crianças foram encontradas, na Alemanha. E sabem porque foram encontradas? Porque o dono do apartamento onde estavam a morar, voou pela janela do quarto andar, tendo morrido na queda. Os policias da zona foram alertados para o incidente e descobriram, na casa do recém-falecido, as crianças antes desaparecidas. Os miúdos foram internados numa instituição especial do governo britânico, o homem morto, uma personalidade da terra, foi enterrada, e a história acabou aqui. Mas, para o inspector deste caso peculiar, com quem falei, há pouco tempo, numa conferência de criminologia, ficou a sensação de que o dono do apartamento terá perecido por homicídio e não devido a algum acto suicida, como se suspeitava na altura.”

 

O comissário conclui o relato, avisando os irmãos Azumbsen para terem cuidado com o que investigam. A intuição do agente leva-o a acreditar que essas crianças estranhas vestidas de negro, sejam as desaparecidas em 1980 ou as que fugiram em 1994, são seres dotados de poderes anormais e capazes de intuir nos outros o demo, como se fossem maléficas criaturas. O comissário Antunes acha que foram os miúdos foragidos de Inglaterra quem matou, por pérfida habilidade psíquica, o homem que estava a ser anfitrião deles, na Alemanha.

 

Os Azumbsen chegam a casa, à hora de almoço. Enquanto comem uma refeição por eles preparada, discutem o que o comissário Antunes lhes transmitiu. “Acho que aquilo que o homem nos disse foi importante. Mas aquela história de as criancinhas serem perigosas não me caiu bem.”, afirma Ricardo. “A mim também não. Aliás, tenho a impressão que fomos seguidos de Lisboa até à nossa casa. Porque razão ele nos deu aquelas informações? Só por simpatia? Acho esse argumento uma boa treta! Cá para mim, ele acha que nós somos suspeitos de alguma cena marada, de algum crime qualquer. Ele acha que nós somos suspeitos, que queremos raptar os putos, ou coisa do género. Acho que foi só por isso que ele nos chamou à PEL!”, opina João.

 

Acho que estás a exagerar. O homem só nos quis ajudar, deve ser daqueles tipos que sente a camisola, e que se orgulha quando surge gente nova a fazer agências de detectives, a lutar contra o crime. É uma explicação um bocado idealista, utópica, mas eu penso que ele deve ser daqueles policias idealistas e utópicos. É claro que esses miúdos que fugiram em 1980, podiam ter alguns poderes fora do comum, como nós. O comissário deve ser daqueles gajos tão apegados ao saber cientifico, racional, rígido, que se passam da carola quando vêem alguém a fazer algo de ilógico, de impossível. O comissário levantou dúvidas sobre os rapazinhos que foram encontrados em 1982, por mero instinto discriminatório contra pessoas que, através do poder mental, partem coisas, levantam objectos, põem em causa a ciência na qual ele tanto acredita. “, disserta Ricardo. Entretanto, João verifica que já não há iogurtes no frigorifico.

 

Porra, mano! Acabaram-se os iogurtes! Estás sempre a comê-los! És um egoísta, meu!”, resmunga o irmão mais novo, sendo, de imediato, censurado por Ricardo. Este afirma que costuma comer menos iogurtes que João. De tal troca de palavras, irrompe uma discussão sobre quem come mais e contribui menos para manter a casa arrumada, limpa, e sempre munida dos necessários mantimentos. O corolário da discussão ocorre quando os dois se repartem em acusações quase violentas sobre quem é, de facto, o irmão mais preguiçoso. Na realidade, o ambiente na vivenda permanece tenso. Os Azumbsen obtiveram algumas pistas para a sua investigação, mas o desvendar desta afigura-se ainda muito distante. Uma das razões para a tensão manifestada entre eles, deve-se à incapacidade de conseguirem, pelos seus poderes extrasensoriais, obter qualquer imagem, qualquer indicio sobre as crianças desaparecidas. Essa incapacidade desarma-os. Sentem-se detectives banais, sem qualquer vantagem real sobre os seus pares.

 


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Quinta-feira, 31 de Dezembro de 2009

AS INVESTIGAÇÕES DA AGÊNCIA SIGGILON: Os filhos de Kurt - Capitulo 2

Os dias passam. Os manos Azumbsen empenham-se na divulgação da empresa, mas a propaganda que fazem obtém resultados quase nulos. Outras pessoas de idade, de perfil semelhante ao da senhora que dissera ter visto um rapazinho vestido de negro a gatinhar pelas sebes, encarregam-nos de procurar os seus bichanos de estimação, que entretanto se escapuliram do lar. Tanto João como Ricardo vêem nestas tarefas um trabalho a tresandar de banal e de humilhante para quem tinha sonhos de desvendar enigmas ocultos ou mistérios terríveis. Mas não recusam o pedido das várias senhoras que aparecem na vivenda, queixando-se da perda de animais queridos. Os dois irmãos conseguem reaver dois gatos perdidos às suas donas, ganhando alguns cobres com isso. “ As mulheres até foram simpáticas! Deram-nos uns contitos...Mas eu só aceitei o dinheiro porque elas, praticamente, nos obrigaram a aceitá-lo! Sinto-me mal por ter aceite estas notas...”, afirma João, um bocado desalentado com o início frouxo do negócio a que se propuseram. “Essas notas vão ser úteis para eu comprar betadine para pôr na cara! Um desses gatos quase me esventrou a tromba!”, resmunga Ricardo, enquanto sente na face as marcas ainda quentes das garras dum dos bichanos que se recusava a ser resgatado para as mãos da sua dona.

 

Os dias passam. Ninguém os chama para o quer que seja. Discutem a possibilidade de pagarem para terem um anúncio na televisão. A discussão não leva a lado nenhum. Ricardo acha que tal forma de propaganda não resulta e considera que a publicidade no pequeno ecrã poderia torná-los mais em objecto de escárnio do que em alvo da procura de abastados clientes. João acredita que a publicidade televisiva resulta, mas acaba por desistir da ideia, pois não consegue imaginar um anúncio que faça a diferença e que venda o produto que pretendem impingir às audiências.

 

Os dias passam. Ricardo Azumbsen sente-se um bocado frustrado. A ausência de casos e de clientes faz-lhe recordar o estado de ânsia e desencanto em que vivia, quando não tinha um emprego para se aplicar, uma profissão onde investir. Observa, novamente, o tempo a passar, a escoar-se sem qualquer perspectiva real de vida ou de carreira para o futuro. João Azumbsen, apesar de não gostar do fracasso inicial que a agência de detectives está a ser, entretém-se a estudar para as cadeiras que lhe faltam fazer, no penúltimo ano da faculdade. Ricardo acha que o seu irmão anda muito despreocupado com o facto do projecto em que investiram se mostrar improfícuo. Por vezes não se contém e recrimina João por este aparentar um certo desleixo em relação à situação em que vivem. Durante duas semanas, nada de especial acontece, os dois permanecem na vivenda, à espera de serem contactados para prestarem os seus serviços. Uma espera desesperante para Ricardo, enfadonha para João. Duas semanas onde as tensões entre ambos irrompem em discussões inconsequentes.

 

Ao fim desses quinze dias, enquanto vegetam na sala de estar do andar de cima da vivenda, Ricardo, enervado, explode:“ Não sei de quem foi a ideia de termos feito este estúpido investimento! Isto não está a dar nada! Isto é uma merda! Mais vale mudarmos de negócio!”. João, ao raciocínio esbaforido do irmão, contrapõe com uma sugestão: “Tens de ter calma! Já calculávamos que isto não ia ser fácil! Temos de procurar um mistério marado e sermos nós próprios a resolve-lo!”. “Pois! O problema é que neste País, em Portugal, nunca acontece nada, a não ser esporadicamente! Estou a pensar em desistir disto! A sério! Fazemos outra coisa qualquer!”, afirma Ricardo com uma veemência que incomoda João.

 

O irmão mais novo chama-lhe a atenção de que não será fácil investir em qualquer outro negócio: “O que podem fazer juntos um Sociólogo e um Historiador? Investigação? Isso é fixe, mas não dá dinheiro! Temos que aproveitar os nossos dons!”. “Os nossos dons? Fazer umas telepatiazitas? Mover objectos? Ter visões? Já tentámos, através do poder mental, localizar fenómenos estranhos para os tentarmos resolver e para ganharmos protagonismo, e, no fundo, o que é que aconteceu? Não descobrimos nada! Nada! Andamos com os poderes mentais bloqueados! Eu tenho a impressão que esgotámos as nossas capacidades com a cena do totoloto! Acho que isto tudo é uma MERDA!”, vocifera Ricardo, meio alterado, com a frustração acumulada a saltar-lhe dos poros da pele.

 

João, fleumático, procura acalmá-lo: “Não te excites tanto. Continuas a ter poderes extrasensoriais. Não reparas como os móveis aqui da sala estão a abanar? Quando te irritas, a energia que está dentro de ti mete-se na matéria das coisas. Isso é um dom. Tens que aproveitar esse dom. Desesperar não serve para nada!” Ricardo não fica muito mais tranquilo com o que o irmão disse. E rebate-o: “Achas que estes poderes servem para alguma coisa? Servem para impressionar um bocadinho. E depois? Eu sei que isso para ti é uma sensação do caraças! Tu sempre tiveste a mania de irrigar sangue para as pupilas, para ficares com os olhos vermelhos, de modo a assustares as miúdas! Mas, que eu saiba, encher os olhos de sangue não paga as contas da luz nem da água, não alivia as despesas, não constitui um ordenado!”. João, permanecendo sereno, considera que a sua maior dúvida existencial do momento é de mudar o nome da Agência Sigilon para Agência Siggilon. Ricardo pensa que não vale a pena discutir com ele seja o que for, e senta-se em frente ao piano, desencantado com a atitude desprendida do irmão.

 

Enquanto martela, com extrema desmotivação, as teclas do piano, ouve alguém a tocar à campainha e a bater à porta com alguma pressa. João comenta o sucedido: “ São onze da noite. Quem é que vem para aqui tocar à campainha a estas horas? Vou lá ver!”. “Vai...vai...E vai pensando em abandonar esta cena da agência...” diz Ricardo para si mesmo, enquanto pensa, com seriedade, em desistir daquele projecto.

 

João abre a porta e vê um conhecido seu, dos tempos do Liceu, com os olhos esbugalhados de pavor. O rapaz chama-se Celso, usa uma farta cabeleira e entra no hall, cheio de tremuras. João reconhece o cheiro a haxe a emanar dele e pergunta-lhe se o rapaz esteve na passa. Celso responde-lhe que sim e que apanhou, há poucos instantes, o maior susto da sua vida. João tenta acalmá-lo. Dá-lhe um copo de água e diz-lhe para se sentar no sofá do escritório do primeiro andar, divisão projectada pelos irmãos para receberem os clientes da agência, mas que, para grande frustração deles, ainda não tinha sido usada. João chama o irmão, enquanto repara, com um certo ar jocoso, na pose desarranjada, amedrontada, alucinada, do seu conhecido do Secundário. Ricardo vai ter com os dois, mantendo o mesmo semblante desmoralizado de quem está prestes a desistir dum sonho que vê quase impossível de realizar. Apesar de ter achado interessante a ideia da Agência de Detectives, guardou sempre reservas quanto ao sucesso desta, ao contrário do irmão, muito mais sonhador do que ele. Por dentro, sente que aquela empresa, na qual pôs alguma crença, irá soçobrar, confirmando as suas receosas expectativas. Chegado ao escritório, prepara-se para ouvir, com João, o relato de Celso.

 

"Às dez e tal da noite, eu estava no banco de jardim duma praceta aqui próxima. Encontrava-me sozinho naquele sitio, não havia ninguém à volta, o banco em que me sentava ficava num cantinho da praceta, não havia crise. Podia fumar um charrito, à vontade. Foi o que aconteceu. Quando estava a acabar de fumá-lo, vejo que, ao longe, no baloiço da praceta, uns vinte metros à minha frente, alguém se tinha sentado. Concentrei o olhar e vi que era um puto todo vestido de preto que baloiçava e baloiçava. No princípio, não liguei nenhuma, mas depois comecei a pensar. Um miúdo tão pequeno, àquelas horas, sozinho, era uma cena muito estranha. Olhei para as janelas dos vários prédios à volta, para ver se algum familiar do puto o estaria a controlar. Não vi ninguém. Acabei o charro, levantei-me e pensei em ir falar com o miúdo, só para satisfazer a minha curiosidade. Dei os primeiros passos e reparei noutro puto, também vestido de preto, sentado num outro banco de jardim, não muito longe de mim. Comecei a sentir que a cena estava a ficar marada. Eu não vi nenhum dos miúdos a vir de lado algum para se sentar no baloiço ou no banco. E comecei a ficar acagaçado. Nesse momento, notei que um outro puto, vestido como os restantes, estava em frente ao baloiço, e parecia contemplar o miúdo do baloiço a brincar. A cena ficou totalmente chinada! Deu-me um vipe, julguei que os três putos eram fantasmas, tive um ataque de pânico, e fugi deles e da praceta. Corri como o caraças e vim aqui ter para vos contar o que me aconteceu. Como vocês dizem que são detectives paranormais ou coisa parecida, vim cá para vos contar isto!”, conclui Celso, gaguejando um pouco. João dá-lhe mais um copo de água, que ele bebe, desenfreadamente, sorvendo-o a tremer.

 

Apesar do aspecto algo autêntico da confissão, João só acreditou mais ou menos no que Celso disse, porque verificou que repetiu o padrão das crianças vestidas de negro, em condições pouco normais. Ricardo também se baseia nessa razão para achar aquele testemunho como digno de alguma credibilidade. Pensa, para si mesmo, que é capaz de valer a pena investigar aquele caso, embora sinta que tal investigação possa ser a derradeira, pois a sua fé na agência SIGILON está quase completamente esvaída. Os dois aceitam seguir Celso para que ele lhes mostre o palco das suas misteriosas visões.

 

O mais novo dos Azumbsen leva consigo uma lupa e uma lanterna para eventuais averiguações no local. A juntar às qualidades extra-psiquicas, os dois irmãos possuem vários conhecimentos ao nível da criminologia, conhecimentos que desenvolveram como hobbies onde depositaram vincado interesse. Qualquer deles conhece de cor todas as aventuras do Sherlock Holmes e todas as histórias de Agatha Christie. Ou seja, para além de relevantes conhecimentos como criminologistas, possuem também uma forte bagagem no que respeita ao romance policial. Imbuídos desse espirito do detective metódico e observador, chegam, com Celso, à praceta onde tudo se passou. Os irmãos Azumbsen esgravatam a pente fino o local, mas nada encontram, sempre seguidos por um medroso Celso que olha para todos os recantos, temendo ver neles espectros ou almas fantasmagóricas.

 

Entretanto, aparece um homem que, certamente, andava pela zona, a passear o seu cão. O homem surpreende os três com uma inesperada pergunta ao assustado consumidor de haxe: “Então, já deixou as crianças em casa? Os miúdos estavam muito divertidos a brincar!”. Estupefacto, Celso, após alguma hesitação, questiona-o se ele estava a falar das crianças vestidas de preto, que vagueavam pela praceta. “Sim. Não estava a tomar conta delas? Que estranho! Passei ao lado da praceta, enquanto passeava o meu cão, e ia jurar que você andava a controlar as brincadeiras dos quatro miúdos. “, afirma o homem, que, indirectamente, demonstra aos irmãos Azumbsen, a veracidade das palavras de Celso. Este inquire o homem sobre o número de crianças que estavam na praceta.

 

"Quatro miúdos? Sim. Lembro-me bem. Dois ao pé do baloiço, outro num banco em frente ao seu, e um quarto rapazito detrás do sitio onde você se sentava. Lembro-me bem. Eu estava do outro lado da rua, mas vi bem. Mesmo à noite, eu vejo bem as coisas. Não é à toa que, em África, eu era um dos melhores snipers da companhia. Não é para me gabar, claro!”, diz o homem. A sua descrição faz desmaiar Celso. Enquanto tenta reanimá-lo, o homem transmite-lhes outra informação, que eles retêm com atenção. “Há bocadinho, um desses miúdos cruzou-se comigo. Não sei que raio ele tinha, mas cheirava muito mal. Cheirava a lixo. De relance, pareceu-me vê-lo com o cabelo basto, desgrenhado, como se já não fosse lavado há várias semanas. E também parecia ter as unhas bastante sujas. Se soubesse que esse miúdo, assim como os outros, andava sozinho na rua, tinha feito qualquer coisa!”, declara com seriedade.

 

Ainda nessa noite, na vivenda, os dois irmãos decidem investigar o caso. “Temos várias testemunhas para determinar um padrão. Há, pelo menos, quatro miúdos vestidos de preto, que andam sozinhos por Oeiras. Este facto levanta várias questões: Serão os miúdos mesmo crianças abandonadas? Não serão putos que se divertem a sair sozinhos à rua, com roupas escuras, por alguma razão especial? Se são crianças foragidas, onde e como vivem elas? Como fazem para sobreviver?”, problematiza João, enquanto Ricardo regista num caderno os relatos e observações dadas pelas pessoas que viram os peculiares rapazinhos.

 

A primeira coisa a fazer é afixarmos, nos prédios em volta da praceta, uns panfletos a perguntar se alguém viu esse género miúdos nas proximidades. Deixamos o nosso contacto nos panfletos, naturalmente. Depois, temos de gastar algum dinheiro para pôr anúncios em jornais regionais e nacionais, de conteúdo semelhante ao dos panfletos. Mas temos de conceber, com muito cuidado, o que vamos escrever nos panfletos e nos anúncios. Temos de redigi-los da forma mais séria e profissional possível. Senão, ninguém vai ligar ao que dizemos!”, considera Ricardo, edificando um plano de acção com o qual João concorda. “Ainda bem que ficaste entusiasmado com esta cena. Estávamos a ficar bué depressivos! O que é que achas de termos atendido o gajo, o Celso, lá no escritório? Não se criou um ambiente fixe, porreiro, ao estilo do Sherlock Holmes?”, questiona o irmão mais novo, contente por ver Ricardo tão aplicado na investigação do mistério. Este só espera que os dois consigam resolver aquele caso e que tal resolução provoque algum impacto na opinião pública, para que a agência SIGILON seja reconhecida.

 

De certeza que vamos resolver isto! E, se descobrirmos os putos, podemos, depois, ir para os telejornais falar do que investigámos e fazer publicidade à nossa empresa!”, declara João, algo excitado, mostrando a veia sonhadora que Ricardo sempre avaliou como sendo uma faceta exagerada do seu carácter.

 


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Quarta-feira, 30 de Dezembro de 2009

AS INVESTIGAÇÕES DA AGÊNCIA SIGGILON: Os filhos de Kurt - Capitulo 1

 

Ricardo e João Azumbsen, carregados de malas e sacos, contemplam a vivenda de dois andares, onde vão morar e que vai servir de espaço para instalarem uma agência de detectives. A casa é velha, não é habitada há vários meses, e os seus antigos donos, antes de a venderem aos dois irmãos, avisaram-nos que, de vez em quando, assistiam a fenómenos estranhos dentro dela. Apesar destes avisos, os manos Azumbsen aceitaram comprar a vivenda, por vinte mil contos, uma pechincha, considerando que a casa está bem situada na zona de Oeiras, tendo apenas o pormenor meio sinistro de estar próxima do cemitério local. Os dois irmãos não se importaram com o facto da vivenda poder estar assombrada. Ambos possuem certos poderes extrasensoriais, e desde cedo se familiarizaram com ocorrências enigmáticas, transcendentes, mágicas ou assustadoras. “E se isto for mesmo habitado por fantasmas?”, pergunta Ricardo, enquanto contempla com algum temor as janelas enevoadas e escuras da casa. “Bah! Isso só é perigoso, se os espíritos que habitarem a vivenda forem agressivos. Podem ser simples almas perdidas que usam o espaço. Pelo que os vizinhos disseram, não deve haver grande problema. Se existirem fantasmas aqui, eles não devem passar de manifestações de energia fortuitas e discretas.”, responde João, com uma tranquilidade que acalma Ricardo. Este continua a olhar para as janelas escuras e enevoadas, confessando ao irmão que gostaria de ter o mesmo sangue-frio dele, no que respeita a encarar espectros fantasmagóricos. “É uma questão de hábito. E tu é que devias mostrar uma atitude mais serena perante estes fenómenos. Afinal, és mais velho do que eu, já experimentaste mais cenas maradas, devias estar perfeitamente habituado a estas coisas.”, observa João. “ Acho que nunca estarei habituado a estas coisas!”, diz Ricardo, enquanto entra pela casa, em passo receoso.

 

Os dois vagueiam pelo hall, ocupado somente por uma mesa negra, pequena, e por algumas cadeiras. Um tapete empoeirado, gasto, de textura quase imperceptível, preenche quase toda a largura do soalho. O hall é iluminado pela luz solar, mas esta não lhe retira um certo timbre misterioso. “Há casas piores!”, exclama João, antes de escancarar a boca para dar um enorme bocejo. Por reflexo, Ricardo boceja também. Os dois levantaram-se cedo para virem receber os homens das mudanças, que lhes vão colocar alguma mobília na vivenda, de modo a esta parecer menos abandonada e menos assustadora. “Achas mesmo uma boa ideia, montarmos aqui a nossa agência?”, questiona Ricardo. “Acho! É uma zona central, a auto-estrada está muito perto, a casa, com um arranjos, vai ficar porreira. Depois, só temos é que ganhar fama como detectives e como investigadores de fenómenos paranormais.”, raciocina João.

 

Decidiram avançar para aquela forma de sociedade, quando confirmaram, com algum espanto, as suas capacidades extrasensoriais. Sozinhos na casa dos pais, uma noite, sentaram-se na mesa da sala de jantar, e, dando as mãos, concentraram-se para que o esforço mental conjunto os levasse a uma visualização do bilhete de totoloto que iria ser premiado no fim de semana seguinte. Utilizaram esse processo e quase conseguiram obter a imagem ambicionada. Repetiram o mesmo método durante as semanas seguintes. Cada vez que tentavam aceder, de novo, pela psique, ao bilhete premiado, a imagem surgia mais nítida, a camada turva, que embaciava os números da sorte, aparecia menos espessa. Por fim, alcançaram os intentos propostos e descortinaram a chave do bilhete premiado. Para jubilo de ambos, verificaram que o esforço mental não fora em vão. Ganharam quinhentos mil euros de uma assentada.

 

O dinheiro dá-lhes muito jeito para o futuro. Ricardo é Sociólogo e está no desemprego há vários anos. João vai no penúltimo ano duma Licenciatura em História e as suas perspectivas no mercado de trabalho eram poucas. Agora, com a fortuna arrecadada, podem dar-se ao luxo de viverem despreocupados e de investirem num negócio tão instável como uma agência de detectives, onde consideram ser possível aplicar com êxito os poderes extrasensoriais que detêm. Querem arriscar num investimento do género, para tentarem obter lucros de modo a afastarem para sempre uma vida incerta, entre a ameaça do desemprego e o trabalho precário como professores colocados aleatoriamente de escola em escola.

 

Os homens das mudanças chegam. Depois de povoadas as diversas divisões da vivenda, com móveis e adornos, o encarregado principal da tarefa informa-os que à tarde trará a mobília restante, logo a seguir ao almoço. Os dois irmãos decidem, então, dar uma vista de olhos pela casa renovada por ornamentos novos por ela espalhados “ A casa parece outra! Só não gosto do barulho dos degraus da escada, quando os subimos. É um ranger sinistro!”, afirma Ricardo, enquanto vagueia pelas divisões do andar de cima. “ De qualquer modo, digo-te já que não pressinto nada de especial na casa. Todos os recantos parecem despidos de energias espectrais.”, conclui João, depois duma aturada análise a todos os compartimentos da vivenda. “Ainda bem!”, declara Ricardo, aliviado por não ter de partilhar o lugar com espíritos ou entidades transcendentes.

 

Ao almoço, entre pratos do dia e cervejas a escorrer na garganta, os dois discutem a denominação da futura empresa. Fazem um brainstorming, enquanto comem e bebem, à volta do rótulo com que irão etiquetar a sua agência de detectives. Discorrem entre nomes banais, nomes apelativos mas pouco adequados à missão da agência, e nomes estranhos que saltam do inconsciente. “Porque não chamamos a agência de Irmãos Azumbsen? Afinal, é o nosso apelido!”, interroga Ricardo perante o olhar critico do irmão. “Acho que não. Acho que não por uma razão, o nosso apelido não vende! Azumbsen. Lembras-te dos tempos do Liceu? Quando nos perguntavam se Azumbsen queria dizer aselha em norueguês? As pessoas quando lêem o nosso apelido, pensam logo em aselha, ou em azeite. Não soa bem para uma agência de detectives! Aliás, sendo realista, tenho que te dizer que considero o nosso apelido um bocado infeliz... Se fosse Amudsen como o explorador nórdico...”, disserta João, provocando algum desgosto em Ricardo, que se orgulha bastante do apelido que tem. O mano mais velho diz que gosta do seu epíteto familiar e realça o seu orgulho nele.

 

No final do almoço, após mais alguns digestivos cuidadosamente saboreados, encontram um nome provisório que ambos apreciam. SIGILON. A sigla, derivada da palavra sigilo, parece-lhes adequada ao investimento que vão levar adiante. Até descobrirem uma denominação melhor, será a escolhida para ser afixada na porta da vivenda, em moldura chamativa, e para ser impressa nos cartões de apresentação que irão distribuir por Oeiras e arredores.

 

Imersos na tertúlia sobre a futura empresa, esquecem-se das horas e constatam que os homens das mudanças já devem estar na vivenda com o propósito de entregarem a restante mobília. Pagam a conta e deslocam-se, céleres, para a casa que compraram, sentindo os estômagos resmungando, incomodados pela pressa que move os irmãos. Ao chegarem à vivenda, encontram os empregados das mudanças em conversa entretida, absorvidos na discussão de algum assunto intrigante. Ao ver os manos Azumbsen, o encarregado principal das mudanças pergunta-lhes se eles têm algum irmãozinho pequeno ou algum sobrinho caçula. Surpresos, os dois dizem que não.

 

Estávamos a estacionar o camião, aqui ao pé da vossa casa, e vimos uma criança pequenita, branca, de quatro, cinco anos, toda vestida de negro, a passar o portão da vivenda e a correr para os prédios que estão detrás da casa.”, relata o encarregado. “Mas a criança saiu da vivenda?”, questiona Ricardo, enquanto João olha para as árvores que rodeiam a casa, através das quais se pode ver, com nitidez, a urbe adjacente. “Pensamos que sim. O portão estava aberto e tenho quase a certeza que ele saiu de lá. Não fomos atrás do miúdo, porque ele correu em direcção aos prédios. Se fosse para a estrada, tínhamos ido atrás dele, para ver se não era atropelado.”, diz o encarregado, completando o relato. “Mesmo se perseguíssemos a criança, duvido que o apanhássemos. O puto corria como o caraças!”, assegura outro dos homens das mudanças.

 

Passada esta singular narrativa, os homens das mudanças terminam o trabalho na vivenda dos irmãos Azumbsen. Estes falam do episódio da criança a correr como um exemplo de alucinação colectiva provocada, quase de certeza, por uns copos a mais. “Nós bebemos um bocadito ao almoço, mas ainda não vemos miúdos vestidos de negro aos saltos pelas ruas!”, ironiza João. “Eu acho que deve ter passado por aqui algum puto em grande velocidade, por alguma razão lógica, e os homens, meio tocados, fizeram um grande filme.”, considera Ricardo.

 

Meia-hora mais tarde, os homens das mudanças terminam o serviço, após terem colocado a restante mobília na casa, arrumando-a como fora indicado pelos irmãos Azumbsen. Estes, depois de pagarem aos homens, verificam, com algum desagrado, que a arrumação efectuada não fora a prevista.” Os gajos deviam estar mesmo tortos! Puseram estes armários no sitio errado! Encostaram o piano da sala de cima no lado inverso onde estava! Baralharam os tapetes todos! Porra! Cambada de bêbados!”, vocifera João, com a voz também ela perturbada pelo álcool ingerido à refeição. “Acalma-te, mano. Não é preciso exagerar! Há umas coisas que ficaram mal arrumadas, mas não é o fim do mundo! Um piano? Não sabia que a casa tinha um piano!”, afirma Ricardo, tocando, ao de leve, nas teclas desgastadas pelo tempo, e constatando que aquele pesado instrumento musical deve ser bastante antigo. “Não tinhas visto o piano? Ah! Pois! O piano tem estado tapado por aquele pano que está ali no chão! No chão! Aqueles gajos das mudanças deixaram o pano no chão, todo desarranjado, todo enrugado! Nem se deram ao trabalho de o dobrar! Porra!”, diz João, antes de se sentar num banco comprido, em frente ao piano, para experimentar o som daquela relíquia deixada pelos anteriores moradores da casa.

 

João Azumbsen começa a golpear as teclas, num estilo trapalhão, misturando algumas notas bem dadas com outras completamente fora do tom. Mais tarde, Ricardo junta-se a ele, no produzir de barulho melódico. Durante longos minutos, inspirados, sem dúvida, pelo que tomaram ao almoço, os dois tocam, frenéticos, arrancando do piano um som atabalhoado, ruidoso e mortífero para ouvidos sensíveis. A certa altura, apercebem-se que alguém bate à porta e toca á campainha num ritmo incessante. “Estão a tocar à porta! Vou atender!”, diz Ricardo, levantando-se do banco que partilhava com João. Este cessa de martelar as teclas e pensa, com algum contentamento, na possibilidade da pessoa que bate à porta ser um potencial cliente da agência. Nos dias anteriores, os irmãos já se tinham empenhado a distribuir panfletos de propaganda, por diversos estabelecimentos de Oeiras.

 

Ricardo abre a porta de casa e verifica que era uma senhora idosa quem tocava à campainha. Esta informa-os que vira um petiz aloirado, vestido de preto, em frente ao prédio onde mora, próximo da vivenda, a gatinhar por umas sebes adentro. “Estava a sair de casa, quando vi uma criança a meter-se por entre os ramos, por entre as folhas, da sebe que existe mesmo em frente ao sitio onde moro. Chamei-lhe a atenção, mas o miúdo não ligou nenhuma. Continuou a enroscar-se para dentro da sebe e desapareceu.”, reporta a senhora, preocupada com o que viu. “ O que é estranho é que não vi nenhum adulto no local. A criança devia estar sozinha a fazer disparates! Como ouvi dizer que vocês vão formar uma agência de detectives, bem que podiam investigar isto!”, diz a senhora, deixando algo perplexos os dois irmãos, que, pela segunda vez naquele dia, ouvem falar dum petiz vestido de preto, a rondar a zona.

 

Ricardo tem, então, uma ideia. Procura, num dos sacos que trouxe para a vivenda, uma cassete-video do grupo rock U2. Encontra-a e coloca-a no leitor de vídeo, instalado pouco antes. Mostra à senhora o clipe “PRIDE”, onde, por momentos, surgem uns miúdos a dançar ao som da banda, numa espécie de anfiteatro composto para a actuação do grupo. Ricardo pára a imagem no instante em que os miúdos surgem e pergunta à a senhora se o rapazinho que vira tem um aspecto semelhante ao daqueles. “Sim. De facto, o petiz que eu vi é muito parecido com esses!”, corrobora ela. “Eu tinha essa ideia. Quando me falou dum rapazinho vestido de preto, lembrei-me logo do vídeo dos U2. Podemos usar esta imagem para procurar a criança. Que acha?”, pergunta Ricardo à senhora que, rapidamente, se apresta a dizer que eles devem fazer o que bem entenderem, pois, afinal, são detectives, e uma das funções dum detective é de descobrir a razão pela qual criancinhas pequeninas e sozinhas vagueiam pela terra sem um adulto pela mão para lhes conter as asneiras.

 

A senhora despede-se e sai de casa deles. João e Ricardo ficam a olhar um para o outro, pensando naquilo que tanto a senhora como os homens das mudanças observaram. “Eu julgava que a mulher nos ia propor que descobríssemos a criança. Afinal, para que veio ela aqui? Só para nos dizer que viu um puto a enroscar-se numas sebes? Que caso tão interessante para resolver!”, confidencia Ricardo, enfadado, com anuência do irmão. Este confessa não ser um caso daqueles, dum miúdo a fazer traquinices longe dos pais, o que os vai levar à fama e à glória como investigadores e detectives. “Vamos mas é arrumar a casa.”, declara João, vendo mais alguns móveis fora do lugar onde deveriam estar, o que o enfastia um pouco.

 


publicado por Jackx às 18:18
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